terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AS TECNO-MICRO-UTOPIAS  DO CORPO CONTEMPORÂNEO




«Só os gulosos é que sabem viver...».
(Stig Dagerman)

Quando falamos do corpo, falamos também, quase sempre, da necessidade ontológica de recorrer não só ao imaginário do perigo, à metáfora da violência e aos fantasmas da provocação, como também ao imaginário dos jogos eróticos, dos rituais afrodisíacos e da violação de todas as proibições, quase como se quiséssemos sentir apenas o prazer imediato da vulnerabilidade de viver «rente aos limites incómodos do paradoxo» diria Stig Dagerman.

Do paradoxo de não chegar à intimidade das pessoas e das coisas face à constante virtualização das relações humanas, porque afinal vivemos cada vez mais afastados da intimidade do corpo ou da carne ou da vida, à medida que nos rebolamos em cima do teclado, em cima do ecrã, em cima do "rato", quase como se toda «a proibição existisse apenas para ser violada», quase como se todos os limites aparentemente ilimitados existissem apenas para ser consumidos, devorados, mastigados em nome da busca de uma qualquer felicidade ou consolação demasiado imediata, isto apesar da «nossa necessidade de consolo ser impossível de satisfazer» diria ainda Stig Dagerman.

Nesta perspectiva, Dagerman continuaria assim a escrever; «Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a sua própria caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta (do ecrã). Quase sempre atinjo o vazio, mas de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo do sopro do vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê entre os dedos? (…). Tendo tudo isso, é sempre escasso aquilo que tenho!».

Apesar do sentimento algo ameaçador/perturbador com que somos confrontados ao ler estas palavras, a verdade é que esta espécie de «neurose obsessiva» da ordem do consumo imediato das imagens tende a impelir-nos a desejar intensamente aquilo que nos falta. Será ainda esta noção de «falta» um dos grandes motores daquilo que nos leva sempre a desejar aquilo que mais desejamos? Afinal, desejamos sempre aquilo que nos falta? Falta-nos sempre aquilo que mais desejamos? Enfim, tudo isto mais não parece do que um interminável jogo ou carrossel de relações demasiado tautológicas.

É por isso que Rosalin Krauss afirma que esta «lógica do desejo», mais do que uma lógica meramente especulativa, agora, é uma lógica da ordem do «real», da «ordem dos corpos», da ordem das «máquinas», tal como foram estudadas pela dupla Deleuze-Guattari no seu Anti-Édipo, quando estes referem ao escrever que «o indivíduo completo desapareceu. Agora terá dado lugar a uma série de órgãos reais e virtuais – seios, ânus, boca, vagina, pénis – que indiciam todos os desejos imperativos de uma qualquer sociedade ainda por vir (tecno-micro-utópica).

No fundo, é esta eterna «lógica do desejo» (tão antiga quanto o próprio humano) que parece estar na origem do chamado pensamento criativo ou disruptivo, ou seja, precisamente aquele pensamento que mobiliza constantemente o fetichismo das imagens violentamente sexualizadas do «peep show» contemporâneo (protagonizado pela pintura, pela fotografia, pela publicidade, pelo vídeo, pela televisão, pelo cinema, pela Internet, etc), e as transforma numa espécie de plataforma tecno-micro-utópica. Eis assim algumas das mais variadas obsessões ligadas agora ao prazer auto-erótico da imagem exibicionista do humano ao transformar assim o corpo numa espécie de valor facilmente «transaccionável».

Tão transaccionável, que consegue levar milhares de pessoas da alta sociedade portuguesa a descer às caves imundas de um hotel/matadouro (cheio de água e lama estagnada), só para ver uma artista nua a roçar-se (em poses diversas) sobre o cadáver inquieto de um antigo militar da força aérea.
Eusébio A.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A ARTE CONTEMPORÂNEA PODE MATAR?

SEMPRE EM MOVIMENTO...

«Já não é para as estrelas que nós lançamos o nosso olhar.
Agora  nós olhamos é para os ecrãs».

(Paul Virilio).

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ENTRE O PAÍS QUE TÍNHAMOS E O PAÍS QUE TEMOS. DESCUBRA AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS (SE FOR CAPAZ...).


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,

fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,

aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,

sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,

pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem

donde vem, nem onde está, nem para onde vai;

um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,

e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que

um lampejo misterioso da alma nacional,

reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,

não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,

sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,

descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,

capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,

da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa

sucedam, entre a indiferença geral,escândalos monstruosos (...).


Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;

este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,

tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara

ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,

incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico

e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,

iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,

e não se malgando e fundindo, apesar disso,

pela razão que alguém deu no parlamento,

de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.

sábado, 16 de outubro de 2010


DEPOIS DE AUSCHWITZ AINDA É POSSÍVEL ESCREVER POEMAS...?

Eusébio Almeida, A ARTE DEPOIS DE  AUSCHWITZ,
foto a cores, dimensões variáveis, 2009/10.
COM UMA FACA NA MÃO


«(...) escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro,
e este facto afecta até o conhecimento que explica porque
se tornou hoje impossível escrever poemas»
(Adorno, 1942, Crítica da Cultura e da Sociedade).


 Abro a porta da Biblioteca Alexandre O`Neill

e retiro de lá um pedaço de papel amarrotado pelo tempo.

Pego numa faca bem afiada e começo a cortá-lo aos bocadinhos.

O papel começa a gritar.

O sangue a escorrer, sem parar.

Largo imediatamente a faca.

Fujo com a faca na mão em direcção a uma pilha de livros.

Espeto a faca em cima do “Crime e Castigo” de Dostoievsky.

O livro não suporta o peso da faca.

A faca não é uma faca.

A faca é o desejo do assassino.

O desejo é o esboço duma vida.

A vida não suporta tanto peso.

Por isso, desenho um círculo com a ponta dos pés e escondo a faca lá dentro.

Ela começa a chorar. Quer sair. Quer fugir. Quer gritar. Quer matar.

A faca quer matar as personagens do livro.

De faca na mão, abro novamente o livro.

De faca e de livro na mão.

Não sei o que fazer…

O melhor é largar o livro?

O melhor é largar a faca?

O melhor é largar a faca e espetar o livro no chão?

O melhor é largar o livro e correr com a faca na mão?

O melhor é não largar a faca!

O melhor é não largar o livro!

Assim a faca acabará por perder a cabeça,

e o livro por justificar o crime do poeta revoltado.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010


O PRAZER DE DESCOBRIR AS POSSIBILIDADES DE UMA NOVA ILHA
(POR AMOR A UMA PEDRA).

Lab. Anti-Boom 2010


Eusébio Almeida (Projecto Anti-Boom Festival, 2010).


ESTOU FARTO DA BIOMETAFÍSICA DAS FRASES.
GOSTO MAIS DO CALOR E DA MECÂNICA DAS PEDRAS-ANDANTES.

Uma pedra pode ser uma arma parecida com os livros.
Um livro pode ser uma arma.
Uma arma pode ser um livro.
Os livros e as armas podem ser semelhantes
às pedras ou aos homens.

Há homens que são parecidos com as pedras
apesar de terem lido muitos livros.
Um livro e uma pedra podem estar carregados  de signos.
Os signos são balas que podem matar,
e «a morte é uma puta» que convém enganar.

Enganar a morte?
Como é que se consegue enganar a morte?
Perguntem ao poeta.
Mas onde é que está o poeta?
O poeta foi dormir, mas está quase a chegar.

Mas os poetas também dormem?
Não, os poetas não dormem,
adormecem apenas de cansaço.

Estou farto da biometafísica do mundo das frases,
e da tautologia excessivamente vaga das vírgulas
que só servem para interromper a textura teológica das palavras. 
As palavras são  uma espécie de cavernas bibliográficas 
que possuem uma língua própria.

Uma língua que fala da origem primordial das coisas, 
e dos seres que andam como pedras-andantes à volta das letras.
É a partir das letras deste poema-pedra-andante que eu desenho
um círculo no chão com a ponta dos dedos das mãos,
na tentativa de interpelar a origem e os sentidos musicais da vida
(essa fonte inesgotável de todas as esperanças).



É do amor que tenho pela vida solitária das pedras e das plantas
que nascem a maioria dos poemas que escrevo.

Para escrever um poema não basta escrever
uma palavra numa página qualquer.
É verdade que qualquer palavra poder ser
transformada numa nova página da história do mundo,
desde que o mundo não seja apenas uma página em branco,
e que a brancura das frases não se transformem
apenas em pedaços de pedra.

Para escrever um poema é preciso escavar com as mãos
um buraco bem fundo na textura rugosa do chão,
e deixar que as pedras sejam apenas imagens invertidas
depois de reflectidas no espelho da água desta ilha selvagem
onde irei continuar a escavar no eterno mapa da vida,
quase como uma espécie de arqueólogo solitário
a desenterrar as peças antigas de uma qualquer cidade
escondida debaixo das águas frias do mar.

Só assim é que o poema nasce.


Aliás, o poema só nasce quando o poeta se assemelha
a uma espécie de máquina patológica de partir pedra.
É por isso que o poeta é uma retroescavadora
que não pára de partir pedra, não só com as mãos,
mas também com os parafusos brilhantes dos dentes.

Quando o poeta deixar de partir pedra
com os parafusos brilhantes dos dentes
o mundo acabará finalmente por se dissolver 
na solidez inquietante do ar.

É a partir da solidez inquietante do ar
que respiramos a liberdade de escrever
sobre o prazer de viver totalmente rodeados de àgua
(o poema é um ser vivo que gosta de respirar por todos os lados).



Para finalizar este poema-pedra-andante,
eu diria apenas;
que as palavras surgem do ventre da terra
que chora pela morte do poema que nasce
do suor dos dedos cansados do poeta
que sangra perante a angústia do poema que escreve.

O que o poeta sofre apenas para conseguir
escrever uma palavra, uma palavra apenas.

Eusébio Almeida
25-08-2010

PROJECTO LAB. ANTI-BOOM 2010

 


quinta-feira, 8 de julho de 2010


HOMENAGEM A SARAH KANE (a primeira grande Dramaturga do século XXI).


«Só há vida nas margens» (Balzac).





Projecto fotográfico de Eusébio Almeida, Homenagem a Sarah Kane, fotografia digital, tamanho variável, 2010.

Poeta, mendigo e monge radical.

Tenho a cabeça a arder só de pensar na pilha de livros que ainda tenho para ler. Infelizmente uma vida inteira não dá para ler tantos livros. De tantos livros jamais sairá uma vida inteira. Uma vida inteira não é uma coisa qualquer. Aliás, não é uma coisa qualquer que consegue dar relevo a uma vida, muito menos a uma vida inteira. Como é que se consegue dar relevo a uma vida inteira? Como é que se consegue não sei. Sei apenas que a vida é uma coisa única. Não sei se será a única coisa. Sei apenas que é uma parte substancial daquilo que ainda não aprendi a conhecer. Não sei como fazer…Aprender a viver?  Aprender a viver, não sei se será a melhor opção. O melhor é aprender a escrever ou a escavar ou a fugir. Por isso, fujo com um livro na mão em direcção ao cume de uma montanha imaginária. O problema é que há montanhas que nos conseguem comer, tal como há livros que nos conseguem esmagar. O problema é que há montanhas que nos conseguem ferir, tal como há livros que nos conseguem matar. Basta para isso que tenhamos a coragem de os abrir com a saliva da ponta da língua...

Agora imagino-me a viver no cume de uma montanha onde existe apenas uma cabana cheia de livros espalhados pelo chão. Aí, como uma espécie de monge radical andaria de costas voltadas para o céu onde traçaria um circulo com o sangue a escorrer da ponta dos dedos das mãos. Aliás, o céu seria apenas o único limite com que teria seriamente de aprender a lutar. Sem fé, sem esperança e sem qualquer vontade de encontrar o que quer que fosse, começaria apenas por escavar um buraco no cume da montanha até esta cair de pé, de joelhos ou de cansaço. Com os dentes enfiados na gramática da terra e os dedos cravados no chão escreveria apenas poemas nas falésias escarpadas da montanha  (como uma espécie de monge profano), não por não saber exactamente o que fazer, mas por desejar aproximar-me das forças primitivas do saber. Aí rezaria sem qualquer tipo de convicção. Rezaria por deus. Contra Deus. A um deus qualquer. Qualquer deus serviria, não para me consolar das excessivas forças da natureza do saber, mas para me ajudar a  procurar os remos de um barco que entretanto seria obrigado a encontrar (a montanha seria assim  o meu verdadeiro campo de sobrevivência ontológica). Mas de preferência rezaria a um deus pequeno, a um pequeno deus. Depois, ficaria no cume da montanha, talvez durante uma vida, talvez durante uma vida inteira ou talvez durante o tempo considerado necessário para poder edificar o difícil edifício de ser poeta. De ser poeta, mendigo e monge radical.

De facto, os poetas são os verdadeiros mendigos da escrita. Mendigam as palavras, quase como quem mendiga o alfabeto das migalhas de pão depois destas caírem de cima da mesa, e de serem pisadas com a ponta dos pés daqueles que nunca aprenderam a amar uma palavra ou um poema ou uma pedra. Aliás, os poetas, os mendigos e os monges profanos ou radicais são os únicos que ainda acreditam no poder inquietante das palavras (das palavras e das pedras preciosas que brilham no cume das montanhas). Agora estou prestes a cair ao pé dos pés da montanha. Está será a minha última grande vitória. Agora já não tenho medo de morrer (não acreditem nas palavras dos poetas). Sem fé e sem Deus. A morrer de frio. A morrer de fome. A morrer de sede. A morrer de medo. A morrer de desejo. Mas, um dia hei-de matar a morte, para que ela nos deixe de matar. Ela que «é uma puta», já dizia esse grande escritor chamado Hemingway, que também lia e escrevia desesperadamente bem, tal como qualquer animal primitivo que goste de fugir da civilização para entretanto aprender a escavar um buraco no cume de uma qualquer montanha imaginária.

Sem caminhar nenhum humano chega lá...


sábado, 19 de junho de 2010


O ARTISTA DEITADO NA CAMA OU AS NOVAS METODOLOGIAS PARA PRODUZIR UMA OBRA DE ARTE.

 
Tracey Emin - My Bed (1998/2000), e o Prazer Virtual, de Vito Acconci.


Ninguém é bom demais para não se deixar viciar por alguma coisa (droga, sexo, álcool, dinheiro, poder, comida, preguiça, fama, trabalho, política, leitura, jogos interactivos, etc, etc.).



Tracey Emin é uma daquelas artistas da nova geração inglesa que gosta imenso de se esfregar no chão antes de começar a produzir uma obra de arte. Parece um animal cheio de raiva ou de cio a remexer nos buracos infinitamente grandes do fio ontológico do horizonte. Gestos lentos. Passos largos. Voz rouca. Olhar inocente. Corpo decadente. Quase como nos concertos verdadeiramente existênciais de Amy Winehouse. Deitada em cima dos quadros. Em cima do palco. Em cima da cama. De pijama vestido. De meias vermelhas. De copo na mão. Comprimidos no chão. E quase todos os livros de teoria da deriva enfiados na cabeça. De Platão a Rimbaud, de Hegel a Nancy, de Baudelaire a W.Benjamin, de Deleuze a Blumenberg, de Poe a Steiner, passando por Nietzsche (a sua grande paixão), o da «morte de Deus», e o da imortalidade da vida. Sim, exactamente, o da SIDA, o da sifílis, o da gonorreia, o da besteneia, mas também o da grande e misteriosa panaceia ocidental).

A mão esquerda levantada em direcção a uma tela em branco. Os dedos enfiados dentro de uma lata de tinta ou de sangue ou de esperma ou de merda. Ajoelhada ao pé da cama. De costas dobradas sobre o chão. De pernas abertas. De gatas (como os cães e as cadelas em pose de plena descontracção umbilical). Com a barriga encostada ao colchão, e a cabeça enfiada na sanita para poder absorver melhor as palavras que deslizam da saliva da boca. Os dentes cravados numa página de Kant para assim poder atingir melhor o calor dos limites aparentemente ilimitados de um novo orgasmo visual. Porém, o consolo da leitura de Kant não a impede de continuar a esfregar-se nos restos de comida espalhados pelos vários tapetes do quarto. Quase com um apetite de larva e um vigor semelhante ao das plantas carnívoras, esta artista parece uma deusa esquizofrénica a trepar pelas paredes antigas da casa.

Aliás, ela vive desesperadamente viva para assim poder encontrar um abrigo minimamente seguro. Afinal, o que é um ARTISTA senão um criador cheio de qualidades deitado na cama a lutar contra os  tão indesejáveis caprichos da morte. Neste caso, uma morte rodeada de livros acumulados geometricamente até ao tecto do quarto de onde parte um fio transparente que desce até ao pé dos pés da cama onde a artista acaba por desenhar, não só um círculo com a ponta da língua, mas também um ponteiro imaginário do tamanho do mundo feito com o sangue retirado das veias cortadas com uma lâmina encontrada no chão.  Foi, aliás, com essa lâmina apertada entre as mãos que ela veio a descobrir o valor, não só das palavras do velho Platão, mas também o valor das frases de Rousseau, dos versos de Rimbaud, dos parágrafos de Hegel, das páginas de Nietzsche ou dos livros de Deleuze e de Foucault, isto só para referir um número muito reduzido de autores. Ela que entretanto acabou de vomitar no chão da sala de jantar depois de ter devorado uma página de Kant (serão a maioria das páginas de Kant demasiado indigestas?). Mais uma página de Kant deitada para o lixo. Lixo Kantiano. Qual razão pura? Qual razão prática? Viva a impureza da razão! A Filosofia da acção! A estética da vida! Uma vida repleta de ficção...!

Por isso, de livro e de lâmina na mão a artista não sabe o que fazer. O que fazer? O que fazer para não morrer? O poeta Manuel Gusmão diz-nos que «todas as coisas podem e devem ser lugares de pensamento» ou de verdadeira ficção. Quase como se nos quiséssemos agarrar a uma bóia e desaparecer em alto mar. Naufragos de garrafa vazia atirada contra alguém que nos consiga salvar.

A verdade é que já não há abrigos seguros, nem jangadas demasiado estáveis, nem sequer lugares proibidos. Por isso, restam-nos apenas as palavras com que tentamos escrever os traços gerais de uma mera «ficção teórica», não à maneira de Lacan, mas à maneira de outra coisa qualquer. Porque na prática tudo são meras ficções de carácter tautológico! Ficções ou dicções? Ficções de ficções de ficções. Restos da história dentro da história que nos resta escrever. A palavra dentro da palavra. A escrita dentro da escrita. A arte dentro da arte. O livro dentro do livro. A imagem dentro da imagem. Figurações utópicas? Distopias? Independentemente dos rótulos, é preciso é inventar até às últimas consequências. Quase como se precisassemos de viver deitados para um dia morrer de pé. Morrer de pé? Sim, tal como aconteceu com a actriz Hupper, quando esta representou a peça 4.48. Psicose, de Sarah Kane (a primeira grande dramaturga a morrer de pé no início do século XXI).

Afinal, estamos para aqui a falar, a falar, mas o que é que é urgente pensar, dizer e fazer acerca do nosso tempo? Tenho a estranha sensação de que a «nossa película de normalidade é demasiado fina», já dizia José Bragança de Miranda, quando reflectia sobre as problemáticas do corpo enquanto palco de intervenção ou enquanto «campo de batalha», isto para usar uma expressão de Barbara Kruger (your body is a battlegroud), quando esta se refere às altas temperaturas do corpo. A verdade, porém, é que dentro e/ou fora do corpo da nossa «pequena ficção» nós podemos e devemos inventar tudo. Ser tudo e todos ao mesmo tempo, e em qualquer parte do mundo (quase como se fossemos uma espécie de malabaristas pendurados no fio das velas de um qualquer barco sem remos).

Nesta perspectiva, Ballard inventou o desastre em cadeia. Sarah Kane inventou a morte em cadeira de rodas. Outros autores inventaram a máquina de escrever. Outros a bomba atómica. Outros ainda a guerra civil. A suméria inventou a escrita. A Idade Média a morte e a tortura dos que aprendiam a pensar. A modernidade inventou a revolução dos transportes e a crise da civilização. E nós inventámos o quê? A verdade é que cada um de nós tem que inventar alguma coisa, senão estará verdadeiramente fodido. Só isso é que nos ligará à vida (a invenção, a criação, a inovação). De facto é preciso continuar a tocar na vida, já dizia esse grande poeta chamado Rimbaud, para quem «a morte era uma puta», isto para citar esse grande caçador de perdizes, de mulheres e de baleias chamado Hemingway.

Por isso, de costas voltadas para o chão, e de cabeça levantada para o ar, só nos resta lutar contra a nossa própria guerra civil interior, tal como Thomas Bernhard a lutar contra a doença das palavras escritas em «Derrubar árvores - uma irritação», ou  em mitologias apologéticas do gene saltitante, escritas por um qualquer Robert Walser imaginário.


sexta-feira, 4 de junho de 2010


PARA EXISTIR BASTA PARIR UMA PALAVRA?

Para existir basta parir uma palavra? Para existir basta parir uma frase? Para existir basta parir um poema? Para existir basta parir uma criança? Para existir basta parir uma vida? Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. Parir uma frase. Parir um poema. Parir uma criança. Parir uma vida. Parir uma palavra. 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Eusébio Almeida a parir uma palavra. A parir uma frase. A parir uma vida...


terça-feira, 25 de maio de 2010


ALGUMAS DAS MELHORES PÁGINAS DA HISTÓRIA DO MUNDO

(Dedico este texto à memória do meu pai, António Gomes de Almeida,
com quem aprendi a caminhar em direcção à liberdade).


«A vida está sempre à beira do desastre»
(Salk)


Tal como há quem escreva para combater a morte, também há quem escreva para suportar melhor a vida. Tal como há quem escreva para viver, também há quem viva simplesmente para escrever. Tal como há quem escreva para preencher a falta ou o excesso de realidade, também há quem escreva simplesmente para não enlouquecer. Esta é, aliás uma ideia muito recorrente na história do pensamento ocidental desde as origens da inquietante história da humanidade. É por esta e por outras razões que não nos faltam exemplos de autores que viveram apenas para conseguir escrever algumas das melhores páginas da história do mundo.

Algumas dessas melhores páginas da história do mundo, terão sido escritas, porventura, por escritores (poetas, filósofos, romancistas, dramaturgos, etc), tão diversos como; Platão, Sófocles, Goethe, Kafka, Freud, Heidegger, Kant, Voltaire, Nietzsche, Tolstoi, Dostoevski, Borges, Rilke, Artaud, Beckett, Robert Walser, Thomas Man, Musil, Ballard, Blake, Rimbaud, Baudelaire, Blumenberg, Hannah Arendt, Deleuze, Foucault, Sarah Kane, Blanchot, Hermann Broch, Roberto Calasso, Ernest Junger, Bataille, Enzensberger, Agamben, Benjamin, Nancy, Zizek, George Steiner, isto só para referir alguns dos mais inquietantes trapezistas da velha história do saber ocidental (a lista, essa, seria verdadeiramente interminável).

Ou seja, assim como há quem escreva para combater a morte, também há quem escreva simplesmente para não morrer. Assim como há quem escreva para combater a vida, também há quem escreva simplesmente para aprender a viver. O que representa uma outra forma de não nos deixarmos abater pelas misteriosas forças do saber (do saber enquanto forma de poder).
Na prática, estes terão sido, porventura, alguns dos muitos “pensadores” que escreveram para apertar a garganta do leitor. Estes terão sido alguns dos autores que escreveram para apertar o pescoço de quem gosta de ler. Estes terão sido alguns dos “escritores” que escreveram como quem atira uma garrafa ao mar, quase como se precisassem de respirar o perfume do frasco que se encontra fora do círculo do declínio das palavras. No fundo, estes terão escrito como quem precisa de se salvar do naufrágio da escrita maldita de não se poder existir sem escrever, pelo menos, uma página de rascunhos por dia.

Estes terão sido, ainda, porventura, alguns dos que escreveram para aprender a fugir. A fugir de algo ou de alguma coisa. Já que aprender a fugir, não é apenas uma forma de nos retirarmos do mundo, mas também uma forma de nos libertarmos das forças que nos oprimem ou que simplesmente nos impedem de viver. Nesta perspectiva, Ts`ui Pên, esse poeta xadrezista que tudo abandonou para compor um livro ou um labirinto, terá dito a certa altura da sua vida: «Retiro-me do mundo para escrever um livro», ou retiro-me do mundo para «construir um labirinto (rigorosamente infinito), renunciando assim aos prazeres da opressão, e enclausurando-se definitivamente durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão, escrevia Jorge Luís Borges no seu famoso Jardim dos Caminhos que se Bifurcam.

Neste caso, nos caminhos que se bifurcam nas páginas 80 e 81 do livro «Ficções», traduzido pela Editorial Teorema, numa edição organizada, se não estou em erro, por Eduardo Prado Coelho, esse autor que escreveu «Tudo o que não escrevi». Terá ele escrito tudo aquilo que não escreveu?
Afinal, o que é a escrita, senão uma outra forma de nos apoderarmos das palavras que ainda não foram pensadas, ditas e escritas pela própria mão do autor que as escreve. Mas, retomando a ideia anterior, diríamos que, se é verdade que há escritores que escrevem para não enlouquecer. Se é verdade que há escritores que escrevem para combater a morte ou para não morrer. Se é verdade que há escritores que escrevem apenas para aprender a viver, também há outros que aprendem apenas a dar  murros no crânio como forma de aprender a escrever (a aprendizagem da escrita do livro é por isso uma coisa muito estranha).

Se tudo isto é verdade, também não é menos verdade, que há escritores que escrevem, apenas, para se entreter e para entreterem todos aqueles que os lêem. E outros ainda, que escrevem simplesmente para ganhar prémios, honrarias, títulos, etc. O que é também uma outra forma de escrever. A verdade é que por falta de espaço e de tempo também, neste momento não vou conseguir escrever muita coisa sobre cada um destes autores. Lá virá o dia em que tentarei escrever alguma coisa sobre cada um deles. É que, agora, tenho uma enorme lista de livros sobre os quais tenho necessariamente que pensar, antes de os poder continuar a devorar.

Aliás, neste momento, devoro as últimas páginas do livro de um grande pensador, que se «inclina para o ensaio como forma de aproximação ao real». Esse pensador é um grande escritor de livros de ensaios. Esse grande pensador chama-se José Bragança de Miranda. O que significa, que nem só de grandes pensadores estrangeiros se faz a grande história da literatura do mundo. Este, pelo menos, escreve como quem caminha de costas voltadas para o céu. Escreve como quem escava um buraco na pele. Como quem traça um edifício no ar. Como quem pensa com os dentes cravados no chão. Como quem desenha as palavras na boca. Como quem anda sem algemas nas mãos. Como quem corre sem argolas nos pés.

Este grande senhor pertence à extraordinária linhagem daqueles pensadores que aprenderam a "amassar" o pensamento com as mãos e com dentes, ajudando-nos assim a baralhar a vida e a confundir as sua forças, antes que estas sejam trespassadas com a ajuda da flecha das palavras, quase como quem bate com a cabeça num vidro que parte. Só assim aprenderemos a viver para que um dia sejamos todos apenas rodeados de flores…



terça-feira, 11 de maio de 2010



 O RETRATO DO POETA REVOLTADO

(work in progress de Eusébio Almeida)

        
      Luís Pacheco                         Hanish Bali                                Prado Coelho
                                      
                                                                                                                                      
  com uma faca bem afiada na mão
rasgo as páginas de um livro
que pertence ao poeta Herberto Helder
mas o poeta não gosta da faca bem afiada
por isso foge com o livro de poemas rasgado debaixo do braço

na verdade o poeta não é uma máquina qualquer
é apenas uma espécie de máquina de escrever
viciado na magia das palavras
 quase como se fosse um libidinoso
devorador de livros inúteis

mas o poeta não é uma máquina de escrever
é apenas uma máquina que escreve poemas com as mãos
antes que estas lhe permitam cravar os dentes bem afiados
no ventre da terra depois deste traçar um círculo no chão
com a ponta dos pés a fim de determinar o património
genético das coisas

por isso o poeta é uma máquina que escreve
não apenas com os dedos
mas também com o suor que escorre da saliva da boca
enquanto esta se deleita com as letras da música
soletrada no silêncio do arquivo das palavras
que o poeta desconhece

em nome da liberdade das palavras
o poeta não escreve apenas sobre a memória das coisas
mas também sobre a magia daquilo que não serve para nada
por isso é que o poema
tal como o poeta
não consegue parar de escrever
não por ser uma máquina
mas por ser um poeta que escreve
com a ponta dos dedos a doer

agora o poeta vai dormir...
 mas os poetas também dormem?
não, os poetas não dormem
adormecem apenas de cansaço
tal como as palavras que descansam no colo
do leitor de livro fechado na mão

é de livro fechado  na mão
que nascem os poemas que não sabem ao suor do poeta
mas apenas à saliva das palavras
que deslizam do ventre e dos lábios carnudos da terra

a terra a chorar pela morte do poema que surge do suor
dos dedos cansados do poeta
que sangra perante o poema que escreve

...não liguem, porque o poeta está cansado
tal como o poema que acaba de escrever
até que apareça a última palavra antes da última palavra
para que o poema consiga finalmente nascer

bom dia, volto já...
dizia o letreiro pendurado na porta do quarto
do poeta enquanto este fingia que dormia

de facto os poetas não dormem
adormecem apenas de cansaço

tal como a maioria dos livros
  tal como a minoria dos homens



domingo, 25 de abril de 2010


VÍDEOS DE EUSÉBIO ALMEIDA EM EXIBIÇÃO NA CINEMATECA PORTUGUESA, E NO CENTRO CULTURAL DE BELÉM/MUSEU DA COLECÇÃO BERARDO.

Os vídeos "Emoção Voluptuosa", e "Moeda" de Eusébio Almeida serão exibidos na Cinemateca Portuguesa (entre os dias 26 e 30 de Abril de 2010), e no Centro Cultural de Belém/Museu da Colecção Berardo (dia 30 de Abril), no âmbito do  Ciclo de Cinema, e do Colóquio Internacional: "Imagem e Pensamento" em torno da vida e obra de Klossowski.
Para consultar o Programa: http://www.cecl.com.pt/actividades/actividades-em-curso/124-ciclo-imagem-e-pensamento-ii-pierre-klossowski-e-os-poderes-da-imagem

 


ARTE, FILOSOFIA E CHOCOLATES!

CHOCOLATES, ARTE E FILOSOFIA!


(Notas sobre a teoria do baloiço, e os malabaristas da cultura ocidental).


«Active Evil is better than passive Good».
                                   (William Blake)


Os livros de um filósofo desconhecido colados na parede do quarto. Os quadros desenhados na moldura rugosa do chão. Os dedos apoiados na face negra de uma escultura grega quase nua. As planícies a entrar pela janela do umbigo (essa fonte inesgotável de prazer). E tudo são pretextos para continuar a pensar na gramática do plano demasiado inclinado das palavras. De resto, as palavras só querem provocar a voz do tal filósofo desconhecido, que parece estar a desaparecer juntamente com o brilho dos sapatos. A verdade é que os sapatos do filósofo ainda não aprenderam a andar. Resta-lhes, por isso, começar a pensar.

Aliás, pensar é como respirar o ar puro da montanha prestes a ruir. Pensar é como dar um mergulho nos limites da geometria quase cega do oceano pacífico, onde te imagino vestida de salmão. Pensar é como atravessar o deserto da cultura ocidental a pedalar em cima de uma bicicleta sem motor. É como idealizar o mundo virado de pernas para o ar. Pensar é como saborear uma barra de chocolate. Pensar é parar de comer. É continuar a correr. É resistir à sede, à fome, ao frio, ao desespero e ao legítimo desejo de não querer continuar a viver. É matar a fome com rodelas de limão. É subir sem cair para voltar a descer. Não, não sou filósofo, nem gostaria de o ser. Os filósofos matam as ideias antes delas ganharem vida própria. Também não sou pugilista. Nem poeta. Nem cantor. Talvez seja apenas um simples acrobata distraído em cima de uma placa giratória prestes a partir.

É a partir do chão que recomeço a desenhar a dança maliciosa do duplo retrato do mundo onde existe o plano inclinado da teoria do baloiço. A teoria do baloiço é aquela que nos permite escorregar em cima dos sapatos brilhantes do filósofo desconhecido. Os sapatos a cair. A cair do ar. O ar com que respiramos o sabor da terra. A terra a voar por cima das nossas próprias cabeças (onde tudo parece estar demasiado inclinado para o acidente). Tal como um malabarista a sentir o desespero da próxima queda. Tal como Godot à espera de qualquer coisa, de que um dia acabará, finalmente, por se fartar de esperar.

É ainda da teoria do baloiço que estamos a falar. Ou da teoria do malabarista que sobe e que desce sem parar. Subir ou descer, neste caso, tanto faz, desde que se consiga encontrar alguma água na geometria, quase plana, do deserto da filosofia (onde não deveriam existir territórios proibidos). Não, não sou filósofo, nem gostaria de o ser. Os filósofos são uma espécie de vendedores ambulantes à beira do desespero. Desesperam, porque o mundo deixou de ser pensado por eles, e pela fatídica «filosofia analítica», que tantos estragos causou à tão famigerada cultura ocidental.

A verdade, porém, é que o mundo não precisa de filosofia, nem de filósofos para nada. A filosofia é que precisa do baloiço do mundo para poder existir. Para poder existir melhor a filosofia precisa é de entrar dentro da cabeça criativa de um qualquer jogador de corridas virtuais, desses que vivem agarrados à obsessão do poder interactivo das imagens. Das imagens com que se podem simular os contornos violentos do corpo em cima da partitura visual de um qualquer ecrã. O ecrã, «essa forma iluminada de resgate», que nos pode ajudar a dar saltos mortais em direcção aos inquietantes abismos do mundo (essa máquina misteriosa que sempre nos ajudou a pensar melhor). Mas, pensar melhor, não é nada mais nada menos, do que aprender a fugir sem qualquer tipo de filosofia. O que significa que é preciso aprender a matar todas as velhas teorias (inventar novas teorias de bolso), já que as velhas teorias podem matar o pensamento. Podem matá-lo porque este parece continuar demasiado ligado a uma espécie de «masturbação de grilos impotentes», diz-nos Eduardo Prado Coelho, em Tudo o que não escreveu (tudo o que não escreveu sobre o equilíbrio instável do mundo).

Mas, pensar e escrever é isso mesmo. É “procurar novas armas” (é agir) com as quais nos possamos defender dos perigos das inúmeras tempestades da vida. Porque a verdade é que nunca estamos demasiado preparados para nada, muito menos para pensar, e muito menos ainda para sentir . Para sentir o prazer de desenhar um circulo com a ponta dos dedos dos pés enterrados na areia molhada do mar. Tal como uma criança a sentir o prazer de moldar a plasticina com as mãos. As mãos enfiadas no barro até este ganhar a forma de uma pequenina parte da grande escultura do mundo. Esta é a magia de aprender a pensar a partir da enorme fragilidade das mãos. Das mãos e dos pés (eis o contributo da verdadeira fisiologia do corpo em movimento ou do movimento do corpo).

De facto, é tão bom poder pensar a partir da metáfora das mãos, dizia Deleuze (e dos pés, e da boca, e dos lábios, e da pele, e da carne), tal como uma criança a sentir o prazer de experimentar o barro a deslizar por entre os dedos acabados de limpar. Tal como Álvaro de Campos a experimentar o sabor do chocolate das palavras com que escrevia ao dizer; «Come chocolates, pequena! Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates». Agora começo a perceber, só os gulosos é que sabem viver. Só eles é que sabem viver bem longe das inúmeras tempestades de areia que continuam a existir no deserto do crânio daqueles que nunca aprenderam a pensar com as mãos, os dedos, a boca, a pele, o corpo...a fisiologia da carne! No fundo, no fundo,  não há programas que nos salvem...!

ARTES EM PARTES NET-ART-ACTIVISMO    3 PARTES DA ARTE
EM 3 ARTES EM PARTES....LAB. 2009/10 (Porto/Barcelona).


sábado, 6 de março de 2010


O MUNDO É UM CAMPO DE BATALHA

«A morte é uma puta»
(Hemingway).

 

Corpos a comer
a beber
a dormir
a sonhar
a viver
e tantos outros corpos a morrer…!


A utopia dos corpos a correr para bem longe do Médio Oriente, onde se encontra esse enorme barril de pólvora que o Ocidente ajudou a criar. As mãos das crianças a escavar um buraco no ventre da terra, quase como se esse ainda fosse o único sítio onde elas se pudessem esconder. O ranho a escorrer do nariz (essa máquina que deixou de respirar). Os olhos pendurados na fragilidade do horizonte do arame farpado, quase como se os velhos campos de concentração ainda permanecessem activos no século XXI, e ninguém fizesse rigorosamente nada para os impedir de crescer.

Os corpos, esses, continuam parecidos com os esqueletos de vidro. O vidro é uma das principais propriedades das máquinas de guerra. As máquinas de guerra são as piores metáforas do amor. Aliás, foi em nome do amor que se criaram algumas das maiores fábricas de armamento, que não param de produzir sofrimento enquanto satisfazem os caprichos e as encomendas dos grandes senhores (patetas) do mundo. As lágrimas, essas, continuam a escorrer pelo rosto de milhões e milhões de refugiados enquanto o sangue continua a fluir em cima dos tratados de paz. A euforia a dominar as grandes cadeias televisivas. Os ecrãs a mostrar os braços levantados no ar. Os corpos estendidos no chão, e os jornais a vender as imagens da morte.

É verdade que os corpos continuam estendidos no chão, para que um dia os homens ponham fim à loucura da guerra, antes que sejamos todos transformados em meros pedaços de pedra (sangue, ranho, fezes e urina acumulados no lugar transitório do ser). Cidades completamente esventradas, paralisadas, penetradas pelos braços metálicos dos mísseis de longo alcance. Casas partidas, furadas, desmembradas, abandonadas, reduzidas a um montão de lixo. Carros de luxo transformados em pasta de papel. Bombas cruzadas a explodir junto ao inquietante “Muro das Lamentações”.

Estas foram algumas das «máquinas de guerra» que entretanto ajudamos a criar, e que parecem servir apenas para alimentar as paranóias de um qualquer deus, que se passeia, tranquilo, de boina na mão e cachimbo na boca à beira do mar vermelho (cego, surdo e mudo). Ao longe, no meio das ervas daninhas, os corpos continuam amontoados à beira da estrada. O dinheiro continua a circular (no ar, em terra ou no mar). As teias do capitalismo selvagem continuam gloriosas (em qualquer parte do mundo). Os políticos continuam inactivos (o terrorismo não pára). Faltam-nos as palavras certas. Faltam-nos certas palavras para que consigamos descrever as políticas assassinas do mundo dito «civilizado». A verdade, é que os deuses e os padres não param de sorrir à custa daqueles que tem ajudado a assassinar.

Sentados à frente do computador, com os brinquedos da guerra virtual na mão, os grandes senhores do mundo bombardeiam as cidades como se elas fossem autênticas cidades de cartão. Bombardeiam as pessoas como se elas fossem meras personagens de plástico. Esses ratos selvagens imaginam as cidades de cartão! Imaginam as pessoas de plástico! Como é que conseguem imaginar a morte como se ela fosse de plástico? Como é que conseguem imaginar as cidades como se elas fossem de cartão? Como é que ainda conseguem viver? Como é que conseguem gerir os seus pequenos (grandes) horrores interiores?

Para Paul Celan; «a morte era uma flor». Para Hemingway; «a morte era uma puta». Para mim a morte é uma grande assassina. Mas, um dia teremos que vencer a morte, para que a morte nos deixe de vencer a nós. A verdade, porém, é que isto de tentar dar vida a um texto, é como tentar dar vida a um campo de concentração onde vivem milhares de refugiados.

De facto, escrever, é como viver no solo firme da grande prisão do mundo, onde dormir deitado é o símbolo, não da vitória, mas da derrota. Da derrota de deus, do Papa, e de todos os políticos assassinos (porque os há, e muitos, convém não esquecer…). Será que o tribunal internacional é de ficção? Se é de ficção, convém que a «ficção nos liberte do cansaço» da guerra, diria Kafka, em nome, não só dos que morrem, mas também dos que ainda vivem. Para que um dia, possamos dizer; os deuses desceram à terra onde vivem finalmente em paz junto dos humanos.

sábado, 2 de janeiro de 2010



A ESTÉTICA DO SILÊNCIO DOS CORPOS QUE FALAM











Eusébio Almeida, Caldas Late Night, ESAD.








 O corpo é uma máquina de guerra


O corpo contemporâneo está a ser cada vez mais seduzido, assediado, atraído, penetrado, mobilizado, requisitado quer pelos gestos demasiado afrodísiacos de um qualquer «teatro da crueldade» (Artaud), quer pelas gulosices de um qualquer banquete anti-platónico de semiologia urbana repleto de simulacros alucinotécnicos capazes de transformar esta máquina processual global (o corpo) numa espécie de plataforma interactiva  da ordem das máquinas de guerra. Ou seja, na prática, o corpo é uma máquina de guerra da ordem da  «álgebra das necessidades» de que falava W.Burroughs em «Naked Lunch», a propósito da liberdade «de fazer qualquer coisa para satisfazer uma espécie de necessidade total»1.

Se, por um lado, esta fórmula básica da dependência decorrente da leitura da obra de Burroughs nos sugere a «necessidade» que temos de nos ligar constantemente a alguém ou a alguma coisa, por outro lado, também nos parece interpelar sobre os perigos que podem existir numa espécie de «ligação total» (existem ligações totais?), a ponto destas, se existirem, poderem comportar os inúmeros riscos e fragilidades da intimidade de qualquer ligação, já que esta se pode desfazer a qualquer momento, provocando assim o medo da desligação, da ruptura, do colapso, e da interminável quebra de laços.

Dito de outra forma, diríamos que, se existe a possibilidade de aparentemente nos ligarmos e desligarmos a alguém  ou a alguma coisa com tanta “facilidade” como aquela com que acabámos de escrever estas palavras é porque a fragilidade das palavras com que pensámos sobre aquilo que acabámos de escrever não nos parece deixar qualquer tipo de dúvida em relação à enorme fragilidade do «mundo» em que vivemos ou em que somos “obrigados” a viver (neste preciso momento em que estamos a escrever).

 Mas se tudo isto pode acontecer, mesmo no meio do silêncio das palavras de alguém que não consegue dizer o que pensa, de forma tão elucidativa, como pensou Herberto Helder ao escrever; «Eu procuro dizer sempre como tudo é outra coisa». Se tudo isto que nós acabámos de escrever a partir das imagens deste corpo pode ser outra coisa, é porque tudo na vida pode ser realmente outra coisa. Até a problemática da imagem da violência dos corpos ou das máquinas de guerra pode ser de facto outra coisa. Apesar desta tese nos poder proporcionar algum consolo, a ponto de nos transportar para o universo demasiado fictício das «cruéis paixões da libertinagem» de Sade, isso não nos deve servir de pretexto para parar de pensar na possibilidade de contribuir para a existência da gestão calculada de mais e mais mecanismos de «suspensão da violência» (em contextos reais e/ou virtuais).

Não que queiramos experimentar o arco dramático da “visão futurista” do «Método Ludovico» de Kubrick, a partir da sua «Laranja mecânica» (baseado no romance de Anthony Burgess) ao querer transformar o trajecto do jovem delinquente em respeitável cidadão, depois dele ter sido preso por (agressão, violação, homicídio, etc). Não que queiramos experimentar esse programa, porque por mais bem intencionados que sejam os programas (e este era uma programa muito bem intencionado) no fim, todos ele acabam por falhar, e este, como todos os outros, não conseguiu escapar à lógica do seu próprio fracasso. Mas como esse não é o objectivo deste trabalho, compete-nos pelo menos perceber que em matéria de «violência» e de «erotismo», «não devíamos ter que dar ao mundo das possibilidades o que apenas a ficção nos devia permitir conceber», diz-nos Bataille, a propósito da obra de Sade, no seu livro Erotismo 2, o que o levou ainda a escrever acerca das gulosices afrodisíacas de Sade, ao dizer que «todo o erotismo é violento», ou que «a violência é a alma do erotismo»3.

Aliás, no caso da obra de Sade4, o “erotismo” (ficção erótica), é de tal forma violento, que Jules Janin, escreveu na Revue de Paris (1834); «Nessa obra apenas existem cadáveres ensanguentados, filhos arrancados aos braços das mães, jovens estrangulados no final das orgias, taças cheias de sangue e de vinho, torturas inauditas. Acendem-se fogueiras, levantam-se forcas, cortam-se cabeças, esfolam-se homens vivos, clama-se, pragueja-se, blasfema-se, arrancam-se corações dos peitos, e tudo isto a cada página, a cada linha, sempre. Oh! Que infatigável celerado! No seu primeiro livro (Justine ou Nouvelle Justine), mostra-nos uma pobre mulher perdida, destruída, sem ninguém, esmagada por toda a espécie de infortúnios, conduzida por monstros, de subterrâneo em subterrâneo, de cemitério em cemitério, batida, ferida, devorada, aviltada, esmagada.

Depois do autor (Sade) nos descrever todos os crimes possíveis e imaginários, quando já está saturado de incestos e de monstruosidades, quando está perante nós, resfolgando sobre os cadáveres que apunhalou e violou, quando já não há igreja que não tenha sido profanada, uma criança que não tenha sido imolada à sua raiva, um pensamento moral sobre o qual não tenha lançado as imundícies do seu próprio pensamento e das suas palavras, nessa altura este homem finalmente detém-se, mas para se olhar, para sorrir de si próprio, e não ter qualquer medo de si», e dessa infernal máquina de guerra chamada corpo.

___________________________________

1 Burroughs, William – Naked Lunch, Grove (1992), cap. xi. Tradução Portuguesa Burroughs, William – Festim nu, Lisboa, Editorial Noticias (2002).

2 Bataille, Georges – Erotismo, Lisboa, (2004), p.154.
Sobre algumas das gulosices afrodisíacas de Sade, Bataille escreveu, citando Maurice Blanchot, a partir do seu Lautréamont e Sade, que; «Todos os grandes libertinos, que só viveram para o prazer, são apenas grandes porque aniquilaram neles qualquer capacidade de (amar). Por isso, se entregaram a “horríveis anomalias” (muitas delas fictícias) exactamente porque a mediocridade das volúpias normais lhes não bastavam. Mas, não significa que sejam insensíveis; antes pretendem gozar uma parte da sua insensibilidade, tornando-se, por isso, às vezes, demasiado ferozes. A crueldade, é apenas a sua autonegação, levada tão longe que se transforma em explosão destruidora. («A insensibilidade torna-se o tremor e o temor que agita todo o meu ser, dizia Sade»); a alma passa, assim, a uma espécie de apatia que se transforma em prazeres cem mil vezes mais divinos do que aqueles que as fraquezas (do dia a dia) nos podem oferecer». Bataille, Georges, Ibidem, p.152. Ou então, Blanchot, Maurice - Lautréamont et Sade, Ed. Minuit (1949), pp. 220-221.

3 Bataille, Georges, Ibidem, p.170.

4 Numa outra passagem, Bataille diz-nos, ainda, que «o homem soberano de Sade, não tem soberania real. É uma personagem de ficção, cujo poder não está limitado por qualquer obrigação (moral ou de qualquer outra espécie). Não deve qualquer lealdade, como a deveria esse outro soberano em relação àqueles que lhe deram o poder. Livre perante os outros, torna-se vítima da sua própria soberania (virtual)». Batailhe, Georges, Ibidem, p.153.


Eusébio Almeida a caminho do deserto...