terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AS TECNO-MICRO-UTOPIAS  DO CORPO CONTEMPORÂNEO




«Só os gulosos é que sabem viver...».
(Stig Dagerman)

Quando falamos do corpo, falamos também, quase sempre, da necessidade ontológica de recorrer não só ao imaginário do perigo, à metáfora da violência e aos fantasmas da provocação, como também ao imaginário dos jogos eróticos, dos rituais afrodisíacos e da violação de todas as proibições, quase como se quiséssemos sentir apenas o prazer imediato da vulnerabilidade de viver «rente aos limites incómodos do paradoxo» diria Stig Dagerman.

Do paradoxo de não chegar à intimidade das pessoas e das coisas face à constante virtualização das relações humanas, porque afinal vivemos cada vez mais afastados da intimidade do corpo ou da carne ou da vida, à medida que nos rebolamos em cima do teclado, em cima do ecrã, em cima do "rato", quase como se toda «a proibição existisse apenas para ser violada», quase como se todos os limites aparentemente ilimitados existissem apenas para ser consumidos, devorados, mastigados em nome da busca de uma qualquer felicidade ou consolação demasiado imediata, isto apesar da «nossa necessidade de consolo ser impossível de satisfazer» diria ainda Stig Dagerman.

Nesta perspectiva, Dagerman continuaria assim a escrever; «Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a sua própria caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta (do ecrã). Quase sempre atinjo o vazio, mas de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo do sopro do vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê entre os dedos? (…). Tendo tudo isso, é sempre escasso aquilo que tenho!».

Apesar do sentimento algo ameaçador/perturbador com que somos confrontados ao ler estas palavras, a verdade é que esta espécie de «neurose obsessiva» da ordem do consumo imediato das imagens tende a impelir-nos a desejar intensamente aquilo que nos falta. Será ainda esta noção de «falta» um dos grandes motores daquilo que nos leva sempre a desejar aquilo que mais desejamos? Afinal, desejamos sempre aquilo que nos falta? Falta-nos sempre aquilo que mais desejamos? Enfim, tudo isto mais não parece do que um interminável jogo ou carrossel de relações demasiado tautológicas.

É por isso que Rosalin Krauss afirma que esta «lógica do desejo», mais do que uma lógica meramente especulativa, agora, é uma lógica da ordem do «real», da «ordem dos corpos», da ordem das «máquinas», tal como foram estudadas pela dupla Deleuze-Guattari no seu Anti-Édipo, quando estes referem ao escrever que «o indivíduo completo desapareceu. Agora terá dado lugar a uma série de órgãos reais e virtuais – seios, ânus, boca, vagina, pénis – que indiciam todos os desejos imperativos de uma qualquer sociedade ainda por vir (tecno-micro-utópica).

No fundo, é esta eterna «lógica do desejo» (tão antiga quanto o próprio humano) que parece estar na origem do chamado pensamento criativo ou disruptivo, ou seja, precisamente aquele pensamento que mobiliza constantemente o fetichismo das imagens violentamente sexualizadas do «peep show» contemporâneo (protagonizado pela pintura, pela fotografia, pela publicidade, pelo vídeo, pela televisão, pelo cinema, pela Internet, etc), e as transforma numa espécie de plataforma tecno-micro-utópica. Eis assim algumas das mais variadas obsessões ligadas agora ao prazer auto-erótico da imagem exibicionista do humano ao transformar assim o corpo numa espécie de valor facilmente «transaccionável».

Tão transaccionável, que consegue levar milhares de pessoas da alta sociedade portuguesa a descer às caves imundas de um hotel/matadouro (cheio de água e lama estagnada), só para ver uma artista nua a roçar-se (em poses diversas) sobre o cadáver inquieto de um antigo militar da força aérea.
Eusébio A.