sábado, 2 de janeiro de 2010



A ESTÉTICA DO SILÊNCIO DOS CORPOS QUE FALAM











Eusébio Almeida, Caldas Late Night, ESAD.








 O corpo é uma máquina de guerra


O corpo contemporâneo está a ser cada vez mais seduzido, assediado, atraído, penetrado, mobilizado, requisitado quer pelos gestos demasiado afrodísiacos de um qualquer «teatro da crueldade» (Artaud), quer pelas gulosices de um qualquer banquete anti-platónico de semiologia urbana repleto de simulacros alucinotécnicos capazes de transformar esta máquina processual global (o corpo) numa espécie de plataforma interactiva  da ordem das máquinas de guerra. Ou seja, na prática, o corpo é uma máquina de guerra da ordem da  «álgebra das necessidades» de que falava W.Burroughs em «Naked Lunch», a propósito da liberdade «de fazer qualquer coisa para satisfazer uma espécie de necessidade total»1.

Se, por um lado, esta fórmula básica da dependência decorrente da leitura da obra de Burroughs nos sugere a «necessidade» que temos de nos ligar constantemente a alguém ou a alguma coisa, por outro lado, também nos parece interpelar sobre os perigos que podem existir numa espécie de «ligação total» (existem ligações totais?), a ponto destas, se existirem, poderem comportar os inúmeros riscos e fragilidades da intimidade de qualquer ligação, já que esta se pode desfazer a qualquer momento, provocando assim o medo da desligação, da ruptura, do colapso, e da interminável quebra de laços.

Dito de outra forma, diríamos que, se existe a possibilidade de aparentemente nos ligarmos e desligarmos a alguém  ou a alguma coisa com tanta “facilidade” como aquela com que acabámos de escrever estas palavras é porque a fragilidade das palavras com que pensámos sobre aquilo que acabámos de escrever não nos parece deixar qualquer tipo de dúvida em relação à enorme fragilidade do «mundo» em que vivemos ou em que somos “obrigados” a viver (neste preciso momento em que estamos a escrever).

 Mas se tudo isto pode acontecer, mesmo no meio do silêncio das palavras de alguém que não consegue dizer o que pensa, de forma tão elucidativa, como pensou Herberto Helder ao escrever; «Eu procuro dizer sempre como tudo é outra coisa». Se tudo isto que nós acabámos de escrever a partir das imagens deste corpo pode ser outra coisa, é porque tudo na vida pode ser realmente outra coisa. Até a problemática da imagem da violência dos corpos ou das máquinas de guerra pode ser de facto outra coisa. Apesar desta tese nos poder proporcionar algum consolo, a ponto de nos transportar para o universo demasiado fictício das «cruéis paixões da libertinagem» de Sade, isso não nos deve servir de pretexto para parar de pensar na possibilidade de contribuir para a existência da gestão calculada de mais e mais mecanismos de «suspensão da violência» (em contextos reais e/ou virtuais).

Não que queiramos experimentar o arco dramático da “visão futurista” do «Método Ludovico» de Kubrick, a partir da sua «Laranja mecânica» (baseado no romance de Anthony Burgess) ao querer transformar o trajecto do jovem delinquente em respeitável cidadão, depois dele ter sido preso por (agressão, violação, homicídio, etc). Não que queiramos experimentar esse programa, porque por mais bem intencionados que sejam os programas (e este era uma programa muito bem intencionado) no fim, todos ele acabam por falhar, e este, como todos os outros, não conseguiu escapar à lógica do seu próprio fracasso. Mas como esse não é o objectivo deste trabalho, compete-nos pelo menos perceber que em matéria de «violência» e de «erotismo», «não devíamos ter que dar ao mundo das possibilidades o que apenas a ficção nos devia permitir conceber», diz-nos Bataille, a propósito da obra de Sade, no seu livro Erotismo 2, o que o levou ainda a escrever acerca das gulosices afrodisíacas de Sade, ao dizer que «todo o erotismo é violento», ou que «a violência é a alma do erotismo»3.

Aliás, no caso da obra de Sade4, o “erotismo” (ficção erótica), é de tal forma violento, que Jules Janin, escreveu na Revue de Paris (1834); «Nessa obra apenas existem cadáveres ensanguentados, filhos arrancados aos braços das mães, jovens estrangulados no final das orgias, taças cheias de sangue e de vinho, torturas inauditas. Acendem-se fogueiras, levantam-se forcas, cortam-se cabeças, esfolam-se homens vivos, clama-se, pragueja-se, blasfema-se, arrancam-se corações dos peitos, e tudo isto a cada página, a cada linha, sempre. Oh! Que infatigável celerado! No seu primeiro livro (Justine ou Nouvelle Justine), mostra-nos uma pobre mulher perdida, destruída, sem ninguém, esmagada por toda a espécie de infortúnios, conduzida por monstros, de subterrâneo em subterrâneo, de cemitério em cemitério, batida, ferida, devorada, aviltada, esmagada.

Depois do autor (Sade) nos descrever todos os crimes possíveis e imaginários, quando já está saturado de incestos e de monstruosidades, quando está perante nós, resfolgando sobre os cadáveres que apunhalou e violou, quando já não há igreja que não tenha sido profanada, uma criança que não tenha sido imolada à sua raiva, um pensamento moral sobre o qual não tenha lançado as imundícies do seu próprio pensamento e das suas palavras, nessa altura este homem finalmente detém-se, mas para se olhar, para sorrir de si próprio, e não ter qualquer medo de si», e dessa infernal máquina de guerra chamada corpo.

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1 Burroughs, William – Naked Lunch, Grove (1992), cap. xi. Tradução Portuguesa Burroughs, William – Festim nu, Lisboa, Editorial Noticias (2002).

2 Bataille, Georges – Erotismo, Lisboa, (2004), p.154.
Sobre algumas das gulosices afrodisíacas de Sade, Bataille escreveu, citando Maurice Blanchot, a partir do seu Lautréamont e Sade, que; «Todos os grandes libertinos, que só viveram para o prazer, são apenas grandes porque aniquilaram neles qualquer capacidade de (amar). Por isso, se entregaram a “horríveis anomalias” (muitas delas fictícias) exactamente porque a mediocridade das volúpias normais lhes não bastavam. Mas, não significa que sejam insensíveis; antes pretendem gozar uma parte da sua insensibilidade, tornando-se, por isso, às vezes, demasiado ferozes. A crueldade, é apenas a sua autonegação, levada tão longe que se transforma em explosão destruidora. («A insensibilidade torna-se o tremor e o temor que agita todo o meu ser, dizia Sade»); a alma passa, assim, a uma espécie de apatia que se transforma em prazeres cem mil vezes mais divinos do que aqueles que as fraquezas (do dia a dia) nos podem oferecer». Bataille, Georges, Ibidem, p.152. Ou então, Blanchot, Maurice - Lautréamont et Sade, Ed. Minuit (1949), pp. 220-221.

3 Bataille, Georges, Ibidem, p.170.

4 Numa outra passagem, Bataille diz-nos, ainda, que «o homem soberano de Sade, não tem soberania real. É uma personagem de ficção, cujo poder não está limitado por qualquer obrigação (moral ou de qualquer outra espécie). Não deve qualquer lealdade, como a deveria esse outro soberano em relação àqueles que lhe deram o poder. Livre perante os outros, torna-se vítima da sua própria soberania (virtual)». Batailhe, Georges, Ibidem, p.153.


Eusébio Almeida a caminho do deserto...