quinta-feira, 8 de julho de 2010


HOMENAGEM A SARAH KANE (a primeira grande Dramaturga do século XXI).


«Só há vida nas margens» (Balzac).





Projecto fotográfico de Eusébio Almeida, Homenagem a Sarah Kane, fotografia digital, tamanho variável, 2010.

Poeta, mendigo e monge radical.

Tenho a cabeça a arder só de pensar na pilha de livros que ainda tenho para ler. Infelizmente uma vida inteira não dá para ler tantos livros. De tantos livros jamais sairá uma vida inteira. Uma vida inteira não é uma coisa qualquer. Aliás, não é uma coisa qualquer que consegue dar relevo a uma vida, muito menos a uma vida inteira. Como é que se consegue dar relevo a uma vida inteira? Como é que se consegue não sei. Sei apenas que a vida é uma coisa única. Não sei se será a única coisa. Sei apenas que é uma parte substancial daquilo que ainda não aprendi a conhecer. Não sei como fazer…Aprender a viver?  Aprender a viver, não sei se será a melhor opção. O melhor é aprender a escrever ou a escavar ou a fugir. Por isso, fujo com um livro na mão em direcção ao cume de uma montanha imaginária. O problema é que há montanhas que nos conseguem comer, tal como há livros que nos conseguem esmagar. O problema é que há montanhas que nos conseguem ferir, tal como há livros que nos conseguem matar. Basta para isso que tenhamos a coragem de os abrir com a saliva da ponta da língua...

Agora imagino-me a viver no cume de uma montanha onde existe apenas uma cabana cheia de livros espalhados pelo chão. Aí, como uma espécie de monge radical andaria de costas voltadas para o céu onde traçaria um circulo com o sangue a escorrer da ponta dos dedos das mãos. Aliás, o céu seria apenas o único limite com que teria seriamente de aprender a lutar. Sem fé, sem esperança e sem qualquer vontade de encontrar o que quer que fosse, começaria apenas por escavar um buraco no cume da montanha até esta cair de pé, de joelhos ou de cansaço. Com os dentes enfiados na gramática da terra e os dedos cravados no chão escreveria apenas poemas nas falésias escarpadas da montanha  (como uma espécie de monge profano), não por não saber exactamente o que fazer, mas por desejar aproximar-me das forças primitivas do saber. Aí rezaria sem qualquer tipo de convicção. Rezaria por deus. Contra Deus. A um deus qualquer. Qualquer deus serviria, não para me consolar das excessivas forças da natureza do saber, mas para me ajudar a  procurar os remos de um barco que entretanto seria obrigado a encontrar (a montanha seria assim  o meu verdadeiro campo de sobrevivência ontológica). Mas de preferência rezaria a um deus pequeno, a um pequeno deus. Depois, ficaria no cume da montanha, talvez durante uma vida, talvez durante uma vida inteira ou talvez durante o tempo considerado necessário para poder edificar o difícil edifício de ser poeta. De ser poeta, mendigo e monge radical.

De facto, os poetas são os verdadeiros mendigos da escrita. Mendigam as palavras, quase como quem mendiga o alfabeto das migalhas de pão depois destas caírem de cima da mesa, e de serem pisadas com a ponta dos pés daqueles que nunca aprenderam a amar uma palavra ou um poema ou uma pedra. Aliás, os poetas, os mendigos e os monges profanos ou radicais são os únicos que ainda acreditam no poder inquietante das palavras (das palavras e das pedras preciosas que brilham no cume das montanhas). Agora estou prestes a cair ao pé dos pés da montanha. Está será a minha última grande vitória. Agora já não tenho medo de morrer (não acreditem nas palavras dos poetas). Sem fé e sem Deus. A morrer de frio. A morrer de fome. A morrer de sede. A morrer de medo. A morrer de desejo. Mas, um dia hei-de matar a morte, para que ela nos deixe de matar. Ela que «é uma puta», já dizia esse grande escritor chamado Hemingway, que também lia e escrevia desesperadamente bem, tal como qualquer animal primitivo que goste de fugir da civilização para entretanto aprender a escavar um buraco no cume de uma qualquer montanha imaginária.

Sem caminhar nenhum humano chega lá...


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