sábado, 6 de março de 2010


O MUNDO É UM CAMPO DE BATALHA

«A morte é uma puta»
(Hemingway).

 

Corpos a comer
a beber
a dormir
a sonhar
a viver
e tantos outros corpos a morrer…!


A utopia dos corpos a correr para bem longe do Médio Oriente, onde se encontra esse enorme barril de pólvora que o Ocidente ajudou a criar. As mãos das crianças a escavar um buraco no ventre da terra, quase como se esse ainda fosse o único sítio onde elas se pudessem esconder. O ranho a escorrer do nariz (essa máquina que deixou de respirar). Os olhos pendurados na fragilidade do horizonte do arame farpado, quase como se os velhos campos de concentração ainda permanecessem activos no século XXI, e ninguém fizesse rigorosamente nada para os impedir de crescer.

Os corpos, esses, continuam parecidos com os esqueletos de vidro. O vidro é uma das principais propriedades das máquinas de guerra. As máquinas de guerra são as piores metáforas do amor. Aliás, foi em nome do amor que se criaram algumas das maiores fábricas de armamento, que não param de produzir sofrimento enquanto satisfazem os caprichos e as encomendas dos grandes senhores (patetas) do mundo. As lágrimas, essas, continuam a escorrer pelo rosto de milhões e milhões de refugiados enquanto o sangue continua a fluir em cima dos tratados de paz. A euforia a dominar as grandes cadeias televisivas. Os ecrãs a mostrar os braços levantados no ar. Os corpos estendidos no chão, e os jornais a vender as imagens da morte.

É verdade que os corpos continuam estendidos no chão, para que um dia os homens ponham fim à loucura da guerra, antes que sejamos todos transformados em meros pedaços de pedra (sangue, ranho, fezes e urina acumulados no lugar transitório do ser). Cidades completamente esventradas, paralisadas, penetradas pelos braços metálicos dos mísseis de longo alcance. Casas partidas, furadas, desmembradas, abandonadas, reduzidas a um montão de lixo. Carros de luxo transformados em pasta de papel. Bombas cruzadas a explodir junto ao inquietante “Muro das Lamentações”.

Estas foram algumas das «máquinas de guerra» que entretanto ajudamos a criar, e que parecem servir apenas para alimentar as paranóias de um qualquer deus, que se passeia, tranquilo, de boina na mão e cachimbo na boca à beira do mar vermelho (cego, surdo e mudo). Ao longe, no meio das ervas daninhas, os corpos continuam amontoados à beira da estrada. O dinheiro continua a circular (no ar, em terra ou no mar). As teias do capitalismo selvagem continuam gloriosas (em qualquer parte do mundo). Os políticos continuam inactivos (o terrorismo não pára). Faltam-nos as palavras certas. Faltam-nos certas palavras para que consigamos descrever as políticas assassinas do mundo dito «civilizado». A verdade, é que os deuses e os padres não param de sorrir à custa daqueles que tem ajudado a assassinar.

Sentados à frente do computador, com os brinquedos da guerra virtual na mão, os grandes senhores do mundo bombardeiam as cidades como se elas fossem autênticas cidades de cartão. Bombardeiam as pessoas como se elas fossem meras personagens de plástico. Esses ratos selvagens imaginam as cidades de cartão! Imaginam as pessoas de plástico! Como é que conseguem imaginar a morte como se ela fosse de plástico? Como é que conseguem imaginar as cidades como se elas fossem de cartão? Como é que ainda conseguem viver? Como é que conseguem gerir os seus pequenos (grandes) horrores interiores?

Para Paul Celan; «a morte era uma flor». Para Hemingway; «a morte era uma puta». Para mim a morte é uma grande assassina. Mas, um dia teremos que vencer a morte, para que a morte nos deixe de vencer a nós. A verdade, porém, é que isto de tentar dar vida a um texto, é como tentar dar vida a um campo de concentração onde vivem milhares de refugiados.

De facto, escrever, é como viver no solo firme da grande prisão do mundo, onde dormir deitado é o símbolo, não da vitória, mas da derrota. Da derrota de deus, do Papa, e de todos os políticos assassinos (porque os há, e muitos, convém não esquecer…). Será que o tribunal internacional é de ficção? Se é de ficção, convém que a «ficção nos liberte do cansaço» da guerra, diria Kafka, em nome, não só dos que morrem, mas também dos que ainda vivem. Para que um dia, possamos dizer; os deuses desceram à terra onde vivem finalmente em paz junto dos humanos.