sábado, 16 de outubro de 2010


DEPOIS DE AUSCHWITZ AINDA É POSSÍVEL ESCREVER POEMAS...?

Eusébio Almeida, A ARTE DEPOIS DE  AUSCHWITZ,
foto a cores, dimensões variáveis, 2009/10.
COM UMA FACA NA MÃO


«(...) escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro,
e este facto afecta até o conhecimento que explica porque
se tornou hoje impossível escrever poemas»
(Adorno, 1942, Crítica da Cultura e da Sociedade).


 Abro a porta da Biblioteca Alexandre O`Neill

e retiro de lá um pedaço de papel amarrotado pelo tempo.

Pego numa faca bem afiada e começo a cortá-lo aos bocadinhos.

O papel começa a gritar.

O sangue a escorrer, sem parar.

Largo imediatamente a faca.

Fujo com a faca na mão em direcção a uma pilha de livros.

Espeto a faca em cima do “Crime e Castigo” de Dostoievsky.

O livro não suporta o peso da faca.

A faca não é uma faca.

A faca é o desejo do assassino.

O desejo é o esboço duma vida.

A vida não suporta tanto peso.

Por isso, desenho um círculo com a ponta dos pés e escondo a faca lá dentro.

Ela começa a chorar. Quer sair. Quer fugir. Quer gritar. Quer matar.

A faca quer matar as personagens do livro.

De faca na mão, abro novamente o livro.

De faca e de livro na mão.

Não sei o que fazer…

O melhor é largar o livro?

O melhor é largar a faca?

O melhor é largar a faca e espetar o livro no chão?

O melhor é largar o livro e correr com a faca na mão?

O melhor é não largar a faca!

O melhor é não largar o livro!

Assim a faca acabará por perder a cabeça,

e o livro por justificar o crime do poeta revoltado.