quarta-feira, 21 de novembro de 2012

DO FLÂNEUR AO CIBERFLÂNEUR

 
DO LÂNEUR 0000 111111AO CIBERFLÂNEUR
(fragmento de um ensaio recentemente publicado pela Relógio D`Água).

 
- Olá! Olá! Estamos aqui! Estamos aqui! Venham salvar-nos deste naufrágio, diria uma das vozes mais persistentes do Facebook, mas a verdade é que ninguém os parece estar a ouvir. Aqui, simplesmente, ninguém parece ter ouvidos para ninguém. Mais um clique e outro, e ainda outro, e mais outro, e assim sucessivamente, sem parar, quase até à exaustão. A verdade é que aqui não há nada para salvar, diria agora uma das vozes mais inquietantes do Twitter. Mas nós insistimos, na tentativa de nos tornarmos um pouco mais “populares” e assim menos infelizes, e então twittamos e facebookamos vezes sem conta, sem parar.
 
Afinal de contas, eu facebooko, tu facebookas, ele facebooka, nós facebookamos, vós facebookais, eles facebookam, ou então eu twitto, tu twittas, e assim, uma vez mais, sucessivamente, sem parar.vós facebookais
eles facebookam
Ou então conforme nos diz ainda Shaviro, quando escreve:«Assim que tal acontece, pouco importa que se esteja agarrado ou não, como receia Zizek, “apenas a simulacros virtuais” ou que, como afirma Heim em tom mais optimista, só agora se consiga “contactar com a realidade”» (Shaviro, 2002: p.206). Porque, afinal, o que importa é estar aqui, ali, acolá, além, em qualquer lado, em todo o lado. Quase como se fossemos os detentores do dom da ubiquidade? Ou então, como escreveu Jeter (1999), em Noir, fazendo ainda uma referência evidente à fórmula básica da dependência, a partir da célebre «álgebra das necessidades» de W. Burroughs (2002), amplamente desenvolvida no romance Naked Lunch, quando escreve: «neste momento, uma pessoa pagará qualquer preço apenas para se sentir outra vez normal» (Jeter, 1999: p.460).
 
É evidente que a partir daqui todas as fronteiras vacilam. Tal como no automóvel, mas agora com mais velocidade e intensidade, reduzimos e aceleramos vertiginosamente apenas para tentar ultrapassar tudo aquilo que ainda nos possa aparecer à frente. A adrenalina, essa, sobe no momento em que largamos a embraiagem. Depois disso, só uma certeza nos guia. A certeza de que não sabermos exactamente para onde vamos ou em que direcção é que estamos exactamente a circular. Mas, afinal, não é verdade que nos podemos simplesmente desligar (offline)? Será que podemos? Perguntem a quem por lá anda durante umas boas horas seguidas por dia, e logo obterão a resposta, que não será nada animadora, na maioria dos casos.
 
rcl42
Almeida, Eusébio - «Do Flâneur ao Ciberflâneur: breve digressão pelas práticas interactivas do espaço contemporâneo», in Genealogias da Web 2.0 (Org. Pedro de Andrade/José Pinheiro Neves), Revista de Comunicação e Linguagens, RCL, nº42, Lisboa, Relógio D`Água (2011), pp. 247-271.

Ensaio disponível em:  http://www.cecl.com.pt/rcl/edicoes/rcl-42-genealogias-da-web-2-0/72-literacia-e-literatura-na-web-2-0/276-do-flaneur-ao-ciberflaneur-breve-digressao-pelas-praticas-interactivas-do-espaco-contemporaneo
 
 Todos os ensaios disponíveis em : http://www.cecl.com.pt/rcl/edicoes/rcl-42-genealogias-da-web-2-0

Outros projetos de Eusébio Almeida (pintura/desenho/fotografia/vídeo, etc)

http://eusebioalmeida666.blogspot.pt/



 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

 DO FLÂNEUR AO CIBERFLÂNEUR
Breve digressão pelas práticas interactivas do espaço contemporâneo
(Artigo completo, conforme foi publicado na RCL, nº42)



«Toda a narrativa é uma narrativa de viagem.»
(Michel de Certeau)   

Depois da falência declarada dos chamados grandes sistemas teóricos com pretensões de explicação absoluta da realidade. Depois das inúmeras «crises de sentido» operadas pelos mais variados autores. Depois da estranha sensação de que todos ou quase todos os fundamentos teóricos ruíram ou de que todos ou quase todos os projectos ideológicos falharam. Depois dos múltiplos escombros deixados à deriva pelas «filosofias da suspeita» (Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, etc). Depois da dissolução vertiginosa de todas estas «grandes narrativas» (Lyotard), igualmente postuladas por outras tantas áreas da teoria do conhecimento, a verdade é que todos estes grandes «abalos históricos» mais não parecem ter feito do que contribuir para o atribuladíssimo processo de «desestruturação» ou de instabilização dalgumas das chamadas verdades últimas acerca da inquietante história da humanidade, mostrando assim, uma vez mais, algumas das múltiplas fragilidades desse velho sujeito ondulatório que é o humano. É verdade que depois destes grandes «abalos históricos» ainda continuariam a surgir muitas outras “categorias” ou “estruturas”, agora consideradas muito mais frágeis, flexíveis, flutuantes, plásticas, elásticas e líquidas, sempre na tentativa, tantas vezes inglória, de preencher os buracos ontológicos deixados à superfície da terra pelas falhas das categorias anteriores. Neste sentido, as novas categorias ditas então de pós-estruturalistas viriam assim a assumir uma tão grande diversidade de nomes que é quase impossível fazer aqui uma apresentação, mesmo que breve, do seu respectivo estatuto conceptual. De qualquer forma, diríamos apenas, ainda para reforçar algumas das ideias anteriores, que todas estas novas “categorias”, ou melhor, que a profusão destes novos operadores conceptuais ditos agora de mais criativos, flexíveis, disseminativos, expansivos, colaborativos (muitos deles de matriz altamente digital), entretanto viriam a assumir nomes tão variados, tais como, por exemplo: disseminação, contaminação, oscilação, hibridação, conectividade, trajectividade, navegação,  interactividade, ubiquidade, cibercultura, hiperrealidade, plasticidade, simulação, colaboração, ligação, telepresença, ciberespaço (isto só para citarmos apenas algumas das noções mais conhecidas), numa espécie de vertiginoso «enfeitiçamento» ou de erotização generalizada da experiência contemporânea. Ou seja, na prática, esta espécie de «atracção fatal» ou esta euforia generalizada vivida em torno dos mais variados feitos e efeitos da Web, que os novos media parecem estar a proporcionar, mais não parece fazer do que confirmar tudo aquilo que alguns de nós já tínhamos verdadeiramente intuído, ou seja, que a única “certeza que ainda nos parece válida”, é a de que estaremos sempre em trânsito ou em permanente movimento e outras tantas vezes simplesmente à deriva, não só à medida que vamos correndo o risco de perder as coisas que mais desejamos ou as pessoas que mais amamos (esse alguém que largamos a favor de uma nova viagem), mas também à medida que vamos alimentando o desejo e a própria necessidade, tantas vezes obsessiva, de continuar verdadeiramente conectados a mais alguém ou a mais alguma coisa, tal como refere Steven Shaviro (2002, p.197), quando reforça a ideia de que «conectar é preciso». Para mais tarde continuar a dizer que «o verbo conectar é uma verdadeira obscenidade no mundo de Noir, o romance de ficção científica de K.W. Jeter. Lá as pessoas estão sempre a dizer coisas tais como: «espera aí que eu já te conecto», ou ele «que se conecte», ou «vai-te conectar» (Jeter, 1999: pp.192-200). Em resumo, «quem está conectado está verdadeiramente fodido»! Ou seja, na prática, «toda a conexão tem o seu preço (…)»7. E o preço de estarmos ou não conectados, de estarmos ou não ligados, é o preço que pagamos ou que temos vindo pagar, por nos continuarmos a “rebolar” excessivamente em cima do teclado, por nos continuarmos a “rebuçar” em cima do rato ou por continuarmos simplesmente a “fazer amor” com o ecrã, ele que incita, induz, seduz, de um para muitos e de «muitos-para-muitos» (em rede), quase como se fôssemos uma espécie de fantasmas interactivos incapazes de resistir aos reflexos demasiado «atractivos» desse extraordinário «mapa de intensidades» (Deleuze), repleto de imagens soltas, de viagens imprecisas e de ligações tantas vezes hesitantes e interrompidas, mas que entretanto vão adquirindo muitas outras dimensões, muitas outras camadas (camadas sobre camadas de sentido), ou repetições de repetições, ou seja, «repetições do mesmo», «repetições do diferente», quase numa espécie de esquizofrenia compulsiva de «diferença e repetição, repetição e diferença», «diferença e repetição, repetição e diferença» diria Deleuze para complicar ainda mais os contornos um tanto ou quanto indefinidos desta problemática deveras aliciante.

É nesta perspectiva, aliás, que continuaremos a navegar, sem mapa, sem guia e sem qualquer direcção demasiado precisa, não só na tentativa de experimentarmos uma série de passagens ondulatórias e de atalhos interactivos, que entretanto nos haverão de conduzir a uma determinada infinidade de «estados virtuais», todos eles agora verdadeiramente agenciados segundo a ordem dessa nova geografia poética do espaço reticular (ciberespaço), mas também na tentativa de traçarmos os contornos incertos de mais um desdobramento qualquer, tantas vezes repleto de outros tantos atalhos, saltos, interrupções, camadas, imagens, distracções e tantas outras oscilações desnecessárias (as viagens na e da rede tem destas coisas), mas que, no fundo, acabarão por nos ajudar a prosseguir esta viagem interactiva, sempre no sentido de traçarmos uma nova etapa que nos permita alimentar o simples desejo de andar de um lado para o outro (na qualidade de ciberflâneurs), e não tanto o desejo de chegar a onde quer que seja. Ora, na prática, todas estas operações irão depender, naturalmente, quer do tipo de necessidades do respectivo nómada digital (ciberflâneur), e dos trajectos que este venha a traçar e a percorrer, quer ainda dos diferentes níveis de satisfação (prazer), ou de dificuldade pelos quais ele entretanto tenha que passar até conseguir alcançar aquilo a que se propôs inicialmente. Estamos a falar, neste caso concreto, da experiência de uma viagem que se apresenta como uma espécie de jogo interactivo ou ciberviagem, na qual o que interessa não é tanto chegar, mas navegar, deslocar-se indefinidamente, não só na expectativa de alcançar alguns níveis de satisfação pessoal (prazer), mas também na expectativa, ainda que virtual, de exorcizar algumas das muitas limitações e insuficiências do real, já que, para todos os efeitos, «é por aqui que toda a gente passa, mas também é por aqui que não passa ninguém», quer à maneira do «Pela estrada fora» de Jack Kerouac, quer ainda à maneira do «Pelas auto-estradas fora das novas redes sociais» de O`Reilly, aí onde acabamos, quase sempre, por coleccionar uma infinidade de «ilusões», e outras tantas sensações verdadeiramente paradoxais. Aliás, a existência dalguns destes paradoxos devem-se precisamente ao facto de vivermos vertiginosamente dentro e fora (on/off) da bocarra desta enorme rede digital, ela que nos coloca, quase sempre, não só perante a ameaça da mobilização infinita das «formas e das imagens», mas também perante o fetiche imediato das mais variadas ligações e desligações (em nome de uma qualquer ligação total?), não nos apresentando assim qualquer tipo de desfecho final, o que nos levará a deduzir que estar «desligado é a grande ameaça», e que «estar conectado é estar completamente fod…», diria novamente Shaviro (2002, ob. Cit. p.197), para baralhar ainda mais os vários elementos desta famosa equação que tende a caracterizar uma boa parte do mundo da chamada era digital.


No fundo, o que nós sabemos ou ainda julgamos saber é que a plasticidade destas novas práticas do espaço interactivo da viagem, feitas a partir da simulação sensorial, da virtualização da experiência, da estimulação imediata dos sentidos, da recombinação das imagens e das formas e da permanente criação e reactualização dos mais variados estados de existência virtual, conseguem, apesar de tudo, alimentar-nos o desejo, a necessidade e a esperança de continuar a viajar, a navegar e a flutuar permanentemente, a fim de vivermos menos mal perante algumas das inúmeras limitações e insuficiências do real (mesmo que vivendo virtualmente), quase como se assim conseguíssemos finalmente viver dentro e fora de uma espécie de «território sem mapa», ou dentro e fora desse mapa sem qualquer tipo de território real, já que, para todos os efeitos, a rede parece labutar sempre sem parar para que o grande «jogo da vida» acabe, afinal, por nunca terminar. O grande problema parece surgir, diria ainda Steven Shaviro (2002: p. 202) a propósito da rede digital, quando ao cabo de algum tempo, ela (a rede) já não nos faz “tripar”, levando-nos assim a depender de uma dose cada vez maior (de estímulos) apenas para não andarmos a cair, ou simplesmente para nos continuarmos a manter de pé. Nesta perspectiva, diríamos apenas, tal como Duchamp, que se «a arte é uma droga que gera dependência», então as actuais redes tecnológicas serão exactamente o quê? A propósito desta questão, li em qualquer lado, se bem que já não me lembre exactamente a onde, que «tudo na vida pode ser uma droga» (o amor, o sexo, a família, o dinheiro, o trabalho, a linguagem, a cidade, a leitura, tal como a comida, o corpo, a pintura, a escrita, a fotografia, o cinema, o jogo, a tecnologia, etc), embora eu continue a achar, neste caso concreto, que mais do que uma «droga», as actuais redes tecnológicas podem ser uma espécie de «extensores da criatividade» (Abraham Moles), compostos por uma infinidade de «estruturas variacionais», não só capazes de potenciar os mais variados estados de espírito, quase como se fossem uma espécie de «máquinas de emaranhar paisagens interiores» diria acertadamente o poeta Herberto Hélder, mas também capazes de nos retirar a camisinha protectora da razão, a fim de navegarmos, descomplexadamente, vezes sem conta, dentro e fora desse grande oceano interactivo das redes sociais, na tentativa, tantas vezes inglória, de mostrar que afinal ainda estamos aqui.


- Olá! Olá! Estamos aqui! Estamos aqui! Venham salvar-nos deste naufrágio, diria uma das vozes mais persistentes do Facebook, mas a verdade é que ninguém os parece estar a ouvir. Aqui, simplesmente, ninguém parece ter ouvidos para ninguém. Mais um clique e outro, e ainda outro, e mais outro, e assim sucessivamente, sem parar, quase até à exaustão. A verdade é que aqui não há nada para salvar, diria agora uma das vozes mais inquietantes do Twitter. Mas nós insistimos, na tentativa de nos tornarmos um pouco mais “populares” e assim menos infelizes, e então twittamos e facebookamos vezes sem conta, sem parar. Afinal de contas, eu facebooko, tu facebookas, ele facebooka, nós facebookamos, vós facebookais, eles facebookam, ou então eu twitto, tu twittas, e assim, uma vez mais, sucessivamente, sem parar.vós facebookais
eles facebookam
Ou então conforme nos diz ainda Shaviro, quando escreve: «Assim que tal acontece, pouco importa que se esteja agarrado ou não, como receia Zizek, “apenas a simulacros virtuais” ou que, como afirma Heim em tom mais optimista, só agora se consiga “contactar com a realidade”» (Shaviro, 2002: p.206). Porque, afinal, o que importa é estar aqui, ali, acolá, além, em qualquer lado, em todo o lado. Quase como se fossemos os detentores do dom da ubiquidade? Ou então, como escreveu Jeter (1999), em Noir, fazendo ainda uma referência evidente à fórmula básica da dependência, a partir da célebre «álgebra das necessidades» de W. Burroughs (2002), amplamente desenvolvida no romance Naked Lunch, quando escreve: «neste momento, uma pessoa pagará qualquer preço apenas para se sentir outra vez normal» (Jeter, 1999: p.460). É evidente que a partir daqui todas as fronteiras vacilam. Tal como no automóvel, mas agora com mais velocidade e intensidade, reduzimos e aceleramos vertiginosamente apenas para tentar ultrapassar tudo aquilo que ainda nos possa aparecer à frente. A adrenalina, essa, sobe no momento em que largamos a embraiagem. Depois disso, só uma certeza nos guia. A certeza de que não sabermos exactamente para onde vamos ou em que direcção é que estamos exactamente a circular. Mas, afinal, não é verdade que nos podemos simplesmente desligar (offline)? Será que podemos? Perguntem a quem por lá anda durante umas boas horas seguidas por dia, e logo obterão a resposta, que não será nada animadora, na maioria dos casos.


Enfim, se é verdade que não sabermos exactamente por onde vamos. Se é verdade que não sabermos exactamente para onde vamos. Também não é menos verdade, que através de todos estes feitos e efeitos da Web, nós podemos ir não só por aqui e por aí, mas também por ali, por acolá, por além ou por outro lado qualquer, numa infinidade de trajectórias possíveis, quase como se andar ou fazer andar fosse agora uma maneira de fazer existir as mais variadas formas de existência. Existências meramente reais ou virtuais? Reais ou virtuais, isso agora pouco importa. O que importa é fazer existir uma nova pluralidade de possibilidades criativas que nos permitam dar a ver, dar a ver de outro modo, de modo diferente, na tentativa de fazer com que esta relação um tanto ou quanto erótica ou fetichista permaneça sempre bem activa, fazendo assim com que os outros existam e com que nós próprios nos recusemos a não existir, à medida que formos criando e reinventando, para todos os efeitos, novos modos de existência (entidades reais e virtuais), mas também novas práticas de sobrevivência, a partir desses outros tantos modos de deslocação, simulação e interacção, agora amplamente proporcionados pelas mais variadas tecnologias digitais. Sempre na tentativa de chegar um pouco mais longe. Chegar um pouco mais longe? Fixar o fugidio? Aprisionar o eco? Congelar o instante? Consumir o efémero? Agarrar o vento? Encontrar a «pílula da felicidade?» Se é certo que não possuímos qualquer tipo de resposta definitiva para dar, nem sobre este assunto, nem sobre muitos outros, se é certo que se perderam as chaves da interpretação séria e rigorosa das imagens do humano e do mundo, também não é menos certo que o melhor é pensarmos que o «preço da esperança é a vida» (W. Benjamin), quase como se quiséssemos fabricar uma «fenda na sombrinha poética do real», à maneira de Lawrence, tal como nos diz Deleuze e Guattari (1991), quando escrevem num texto verdadeiramente poético, ao dizer que «os homens fabricam continuamente uma sombrinha que os abriga, no interior da qual traçam um firmamento e escrevem as suas convenções, as suas opiniões, mas o poeta, o artista, pratica uma fenda na sombrinha, rasga mesmo o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e ventoso e enquadrar numa brusca luz uma visão que surge através da fenda (…). Serão sempre necessários outros artistas para fazer outras fendas, operar as destruições necessárias, talvez cada vez maiores, e restituir assim aos seus antecessores a incomunicável novidade que se tinha deixado de saber ver (…). Nesta perspectiva, o pintor não pinta numa tela virgem, nem o escritor escreve numa página branca, mas a página ou a tela estão desde logo de tal modo cobertas por «clichés» preexistentes, preestabelecidos, que é necessário antes de mais apagar, limpar, laminar, ou até rasgar para fazer passar uma corrente de ar puro vinda do caos ou de outro lado qualquer» (Deleuze e Guattari, 1991: p.178).


Esta é uma daquelas extraordinárias passagens que nos fazem lembrar a mítica personagem de Ulisses, lutando, neste caso, para se libertar das amarras de uma espécie de labirinto global (agora da ordem do virtual), para dentro do qual parece haver cada vez mais pessoas a querer entrar, mas dentro do qual parece ser cada vez mais difícil e até perigoso viver. Tudo isto nos obriga a pensar seriamente sobre a maior ou menor pertinência dalgumas destas questões ou pelo menos a não ficarmos demasiado parados, continuando assim a explorar tudo aquilo que ainda houver para explorar, não tanto no sentido de «esticar a corda» até ela partir, mas no sentido de tentar perceber as palavras de Blanchot, quando este escreve sobre o arrepio das palavras de Pascal «(…) ante o silêncio eterno do espaço, e o arrebatamento de Joubert, ante o céu constelado de vazios, e que Mallarmé dotou de uma experiência nova: o espaço como aproximação a um outro espaço, origem criadora e aventura do movimento poético. Se ao poeta pertencem a angústia, a preocupação da impossibilidade, a consciência do «nada», e esse tempo de aflição que é o seu próprio tempo (...)»8, então ao viajante, ao andarilho, ao artista, ao nómada inquieto, e em particular ao ciberflâneur “pertencerão”, certamente, algumas das palavras de Baudelaire, quando este  afirma que «uma das condições essenciais para experienciar o mundo, é deixar-se afectar pelo presente (...), e por todos os detalhes em que este ainda se exprime» (Baudelaire, 1993: 79)9. Por isso, sem a veleidade de me querer colocar no lugar daqueles que ainda se acham capazes de “interpretar” os múltiplos e variados sintomas do «presente». A verdade é que o presente tende a aparecer-nos, cada vez mais, como algo verdadeiramente ininterpretável. Partindo deste princípio básico, mas não me querendo furtar à ingrata responsabilidade de pensar (afinal, quem é que ainda se atreve a interpretar o que quer que seja?), eu diria apenas que o presente parece exprimir-se, cada vez mais, através da inteligência, da criatividade, da capacidade, da competência e da coragem daqueles que não desistem de lutar a favor das mais variadas formas de liberdade (contra todas as formas de absolutismo), na tentativa, tantas vezes inglória, de conseguir, pelo menos, levantar algumas questões acerca dos principais sintomas que tendem a caracterizar o chamado nosso tempo (se bem que tempo nenhum nos pertença). Nesta perspectiva, nós diríamos, uma vez mais, que o presente parece continuar a exprimir-se através do pensamento, da voz e dos gestos, cada vez mais frágeis, de todos aqueles que ainda se dispõem a navegar dias e noites a fio. O tempo passa, foge, escapa-se-lhes por entre os dedos, quase como se este ainda quisesse agarrar aqueles que se dispõem a navegar pelas margens flutuantes desse imenso e intenso oceanário digital, onde afinal acabamos quase todos por criar, partilhar e reactualizar algumas das nossas mais íntimas ligações (em forma de rede móvel), quase como se a «rede tecnológica» fosse uma espécie de vibrador repleto de características um tanto ou quanto «alucinogénicas» (Ernst Junger) ou psicoactivas, ou seja, encontrando-se assim, para todos os efeitos, sempre demasiado bem preparada para criar, oferecer, garantir e perpetuar a satisfação, quase infinita, das nossas mais íntimas e variadas necessidades, sejam elas reais ou meramente virtuais (eis assim a natureza verdadeiramente psicotrópica da arte, da cultura, das tecnologias, e da vida contemporânea em geral).


Se é verdade que a satisfação da maioria destas necessidades pode estar “devidamente garantida”, também não é menos verdade que o sabor dessa satisfação pode ser demasiado amargo, mas a cor, essa, é certamente o azul. E o azul, neste caso concreto, só pode ser o azul-cobalto (tão raro na natureza), ou então o «azul eléctrico» do mar, onde acabamos por naufragar de dia e de noite, sempre sem parar. Sem deter o poder, copiar, cruzar, inserir, ver, editar, abrir e fechar as janelas, mas também recuar, avançar, partilhar, navegar, ou seja, na prática nada nos parece restar a não ser continuar a viver sob o efeito desta espécie de «estética da interactividade», e da colaboração diria S. Penny. Quase sem ligação ao espaço (físico), mas ligados ao ciberespaço. Quase sem ligação ao local (terra/território/topologia), mas ligados a uma espécie de pensamento global. Quase sem ligação ao tempo, mas ligados aos mais variados fenómenos do cibertempo. Quase sem ligação à vida (real), mas ligados a muitas outras «formas de vida» (entidades virtuais). Enfim, clandestinos do futuro. Terroristas do passado. Trepadores de montanhas virtuais. Praticantes de saltos mortais (com ou sem vontade, já que às vezes os fusíveis não resistem, e nós acabamos por nos manter fora da rede). No fundo, esta é mais uma tentativa de ligar e desligar o cérebro do computador até perder de vista o horizonte que nos liga à outra margem do ecrã. Partes de um «ecrã total»? «Arte da hibridação»? (Couchot). Arte da lubrificação? Da lubrificação da vida? Ou apenas atalhos e retalhos de um «falsificador de imagens»? De um repetidor de palavras? De um «pornógrafo demasiado electrónico»? O velho Jack London, diria apenas: «Fogos-fátuos, vapores de misticismo, desarmonias psíquicas, orgias anímicas, gemidos no meio das sombras, ligações bizarras, véus e tecidos de palavras e de imagens, subjectividades balbuciantes, sondagens às cegas e divagações (ondulantes), fantasias ontológicas, alucinações (técnicas, poéticas e por vezes também demasiado patéticas), onde se parecem materializar, apesar de tudo, alguns dos maiores fantasmas da esperança» (London, 1975: p.232), a que todos nós, certamente, precisaremos de continuar ligados para não perder de vista tudo aquilo que ainda verdadeiramente se passará à nossa volta, sob pena de cairmos apenas no chão ou simplesmente deixarmos de nos manter de pé (o que não seria de todo necessário, nem sequer desejável).


Enfim, gestos e passos de «filigrana», a provar «que não somos, nem donos da vida, nem da narrativa, nem da história (nem das viagens, nem das viagens do corpo em movimento, nem do movimento do corpo, nem do corpo da viagem), nem de quase nada», escrevia um belo dia Jorge Listopad, no Jornal de Letras, a propósito dos que amam a dança, dos que amam os pássaros, dos que amam as estradas, dos que amam o movimento, mas também de todos aqueles que amam a «infinidade das suas dobras». O que nos faz pensar, e para terminar este artigo (que já vai demasiado longo no número de páginas) na «cidade de vidro», da célebre Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster, e também numa das suas personagens errantes (Quinn/William Wilson), à medida que esta vai deambulando vertiginosamente pelas ruas labirínticas da cidade de Nova Iorque. Essa cidade aparentemente inesgotável ou esse «labirinto de passos intermináveis», para quem «o movimento era a essência do acto de pôr um pé diante do outro e seguir a errância do seu próprio corpo. Todos os lugares se tornavam semelhantes caminhando assim sem destino, e deixava de ter importância o sítio onde se encontrava. Nos seus melhores passeios, conseguia atingir o sentimento de que não estava em sítio algum. E isto, afinal, era tudo o que pedia às coisas: não estar em sítio algum» (Auster, 2004: pp.10-11). Quase como se «o mundo inteiro fosse feito apenas de plasticina», diria ainda Gil Heitor Cortesão, ou então, como se o mundo fosse feito apenas da voz do movimento e o movimento fosse um grande monitor aberto às mais variadas «formas de vida» (Agamben), já que é sob estas mais variadas «formas de vida» que tudo parece continuar a mudar, para que assim nem tudo fique na mesma. Porque, infelizmente, todos nós sabemos demasiado bem, como é fácil nos deixarmos ficar à espera, como é fácil deixarmos de nos mover, como é fácil ficarmos demasiado parados, ou muito pior do que isso, como é fácil adormecermos ou deixarmos que nos adormeçam. Porque a verdade é que se nos deixarmos adormecer, lá virá o dia e a hora em que «nos levantaremos da cama, com a estranha sensação de que conquistámos o mundo inteiro»10. Depois, se tivermos um pouco de sorte e também de ousadia lá «podemos, eventualmente, ficar à espera do comboio do futuro numa qualquer paragem do autocarro» dizia um verso de Sérgio Godinho, em nome dessa extraordinária experiência que é a experiência da liberdade de podermos continuar a pensar e a questionarmo-nos livremente sobre as urgências do tempo e do espaço em que nós próprios vivemos. Neste sentido, porquê adiar a viagem de continuar a viajar, já que «alguma vez se há-de ter que parar?», interrogava-se Aristóteles no tempo em que as pedras ainda falavam com os humanos e os humanos ainda se podiam dar ao luxo de «não terminar dentro de uma lixeira qualquer». Por isso, continua Pessoa, ainda pela voz de Álvaro de Campos (o da Tabacaria): «Come chocolates, pequena (e viaja diríamos nós também). Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates (e viagens)». Assim parece tudo muito fácil, mas a verdade é que, às vezes, muitas vezes até, as soluções parecem não estar exactamente aí, obrigando-nos assim a procurá-las noutro sítio qualquer. Resta-nos, por isso, continuar a procurar o «braço certo», conforme nos diz, de forma elucidativa José Bragança de Miranda, quando escreve: «A vir, sendo o braço certo, poderá ser o braço de um outro homem, de um «monstro» ou de um «cyborg», mas será sempre um braço humano» (Bragança de Miranda, 2002: p.193). Um braço humano que se ligará a outro braço, que entretanto nos ajudará a procurar um outro braço, e outro, e ainda outro, e mais outro ainda, até perdermos de vista a enorme quantidade de braços a que precisaremos certamente de estar ligados para que o mundo possa continuar a andar verdadeiramente para à frente…



 Almeida, Eusébio - «Do Flâneur ao Ciberflâneur: breve digressão pelas práticas interactivas do espaço contemporâneo», in Genealogias da Web 2.0, RCL (Org. Pedro de Andrade), Revista de Comunicação e Linguagens, RCL, nº 42, Lisboa, Relógio D`Água (2011), pp. 247-271.
Site de acessohttp://www.cecl.com.pt/rcl/edicoes/rcl-42-genealogias-da-web-2-0
 
1 Steiner, George - O silêncio dos livros (seguido de Esse vício ainda impune), de Michel Crépu, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 62-63.
2 De facto, hoje em dia somos cada vez mais uma espécie de «turistas sentados» à frente do computador. Esta urgência de andarmos vertiginosamente sem sequer nos deslocarmos fisicamente, será uma das abordagens a que nos dedicaremos, posteriormente, quando desenvolvermos algumas das questões relacionadas com a problemática da hiperficção, da interactividade e das múltiplas retóricas do link, etc.
3 Para uma análise mais detalhada desta noção de «viagem», para além do Anti-Édipo de Deleuze, veja-se também o livro de Jacques Besse - «Le Danseur», in La Grand Paquê, Paris, ed.Belfond, 1969, já que toda a primeira parte deste livro descreve precisamente o passeio do esquizo pela cidade moderna, enquanto que a segunda parte - «Legendes folles», se dedica a reflectir sobre o processo algo alucinatório da viagem a partir de determinados episódios históricos. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix - O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, Lisboa, Assírio & Alvim, s/d, pp. 88-91.
4 Para uma análise mais pormenorizada do conceito de «não-lugar», veja-se também o livro de Marc Augé, denominado precisamente de «Non-Lieux. Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité», Paris, Éditions du Seuil, 1992.
5 Robert Smithson, cujos projectos favoritos eram a recuperação artificial de zonas mineiras abandonadas ou espaços pós-industriais sujeitos às forças infernais da natureza, parecia assim perseguir ao longo dos seus percursos, não só as marcas contraditórias de um projecto de intervenção social, cultural e artístico (a partir de um dos seus principais conceitos - «esculturas de um sítio»), mas também as marcas ou os «passos de uma terra esquecida pelo tempo» (partes de um certo local em transformação), aí  onde pareciam habitar, suspensos, o «presente, o passado e um qualquer futuro ainda por vir». Careri, Francesco - Land & ScapeSeries: Walkscapes: Walking as an aesthetic practice, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, SA, 2002, p. 161.                                                                                                              
6 Os seus passeios épicos nos Himalaias, Andes, Austrália, Japão e Islândia, são uma das marcas mais inconfundíveis da história da Land Art Internacional.
7 Shaviro, Steven - «Ligações Perigosas: a ontologia das redes digitais», in Bragança de Miranda, José A. e Teresa Cruz, Maria (org.), - Crítica das Ligações na Era da Técnica, Lisboa, Tropismos, 2002, p.197.                                                                                                                                                              
8 Blanchot, Maurice - O Livro por Vir, Lisboa, Relógio D`Água, s/d, p. 249.                                                                    
  9  De facto Baudelaire teve a extraordinária capacidade de escrever algumas das melhores páginas do seu e do nosso próprio tempo, conforme podemos constatar da leitura dalgumas das mais variadas passagens  dos seus livros. Todos eles, aliás, a merecer uma atenção especial de leitura e releitura. Livros tais como; «Le Peintre de la Vie Moderne»; «As flores do Mal»; «Os Paraísos Artificiais», ou ainda «Fusées; Mon Coeur Mis à Nu», isto só para citarmos algumas das suas obras mais conhecidas.                                                          
10 Passagem livremente adoptada por mim a partir do excerto de um dos versos do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa (heterónimo Álvaro de Campos), onde reza assim; «Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama». Pessoa, Fernando – Obra poética de Fernando Pessoa/Poesias de Álvaro de Campos (Introdução, organização e biobibliografia de António Quadros), Lisboa, Publicações Europa América, p.210. A propósito da obra poética de Pessoa, veja-se ainda a análise crítica feita por José Gil (entre outros autores) no seu livro, O Espaço Interior (no caso da análise desta passagem, veja-se a pág. 18). Gil, José - O Espaço Interior, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p.18.                                                                                                                                                               


Abramovic, Marina e Ulay
1988       The Lovers. The great wall walk (performance/film, 1h, 5`, sound, colour), Chinese Wall. Collection: Cologne, Museum Ludwig, online in http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.asp?ID=ML000044&lg=GBR, acedido a 12 de Junho de 2011.

Auster, Paul
2004       The New York Trilogy, London, Faber and Faber, pp.10-11.

Baudelaire, Charles
1993       O pintor da vida moderna (com  tradução e posfácio de Maria Teresa Cruz), Lisboa, Vega/Passagens, p.79.

Benjamin, Walter
1940      Paris, Capitale do XIX Síècle, Paris (Das Passagen-Werk), Paris, Cerf, 1989.

Bragança de Miranda, José A.
2002        Teoria da Cultura, Lisboa, Edições Século XXI, p.193.

Burroughs, William
2002        Festim Nu, Lisboa, Notícias Editorial.

Careri, Francesco,
2002    Land & ScapeSeries: Walkscapes - El andar como práctca estética/Walking as an Aesthetic   Practice, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, SA.

Certeau, Michel
1990      L`invention du quotidien . 1: Arts de Faire, Paris, Éditions Gallimard, pp.169-183.

Crépu, Michel
2005    «Esse vício ainda impune», in George Steiner, O Silêncio dos livros, Lisboa, Gradiva, pp. 62-63.

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix
1972       L`Anti-Oedipe: Capitalisme et Schizophrénie, Paris, Les Éditions de Minuit (O Anti-Édipo – Capitalismo e  Esquizofrenia, Lisboa, Assírio & Alvim, s/d, pp.88-96.

Deleuze, Gilles e Parnet, Claire
1977        Dialogues, Paris, Flammarion , 1996, pp.164-172.

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix
1991       Qu`est-ce que la Philosophie?, Paris, Les Éditions de Minuit, p.178.

Jeter, K.W
1999      Noir, Londres, Orion Millenium, pp.192-200.

Krauss, Rosalind,
1984      «Sculpture in the Expanded Field», in The AntiAesthetic: Essays on PostModern Culture, Washington, Bay Press.

London, Jack
1975        John Barleycorn ou memórias alcoólicas, Porto, Livraria Civilização, p. 232.      

Long, Richard
1967     A Line Made by Walking (photograph and pencil on board image, 375 x 324 mm, on paper, print), Londres, Tate Collection, online in http://www.tate.org.uk/servlet/ViewWork?workid=8971, acedido a 9 de Junho de 2011.

Michaux, Henri
1998       Equador,  Lisboa, Fenda,  pp. 107-166.

Nancy, Jean- Luc
1988        L`expérience de la Liberté, Paris, Galilée.

Shaw, Jeffrey e Groeneveld Dirk
1989        The Legible City, Computergraphic installation (Manhattan version). Collection  of  ZKM-Medienmuseum, Karlsruhe, Germany, online in http://www.jeffrey-shaw.net/html_main/frameset-works.php, acedido a 12 de Junho de 2011.

Shaviro, Steven
2002       «Ligações Perigosas: a ontologia das redes digitais», in Bragança de Miranda, José A. e Teresa Cruz, Maria (org.), - Crítica das Ligações na Era da Técnica, Lisboa, Tropismos, pp.197-214.

Smithson, Robert
1967         Monuments of Passaic (six photographs and one cut photostat map), New Jersey. Collection: Museum for Samtiskunst, Norway, online in http://www.robertsmithson.com/photoworks/monument-passaic_300.htm, acedido a 11 de Junho de 2011.
Steiner, George

2005       O Silêncio dos livros, Lisboa, Gradiva.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012


PROCURAR CONSTRUIR
(UM BURACO NO CHÃO)

A toca do lobo solitário/em permanente construção 
(Arquitetura móvel).



 

Anselm Kiefer


Uma aprendizagem continuada para ampliar o leque de perguntas que uma sociedade deve fazer a si própria.

«Construir, habitar, pensar», é naturalmente uma forma inteligente de viajar (1951), Heidegger.

Construir e viajar contra uma possível condição de desabrigo e de insegurança geral!

Os progressos de construção de um futuro retiro espiritual, nas margens do antigo "Caramol".
Um caramol primitivo! Tão primitivo como os primeiros dias passados dentro da barriga de uma qualquer infância perdida!


Manual de sobrevivência/programa metodológico de base libertária, ou simplesmente livrinho de «instruções para se ser (in)feliz», diria Watzlawick.
(work in progress)

1.
2.
3.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.


Tudo se resume, neste caso,  apenas à construção de um espaço experimental de verdadeira liberdade criativa.
Afinal, eu não quero ter «a terrivel limitação daqueles que vivem apenas daquilo que é passível de fazer sentido. Eu não quero isso. Eu quero uma verdade inventada (por mim)» (Clarice Lispector).

Os trabalhadores, esses, continuam a caminhar em direção a uma estrada demasiado inacabada ou tão somente a escavar em direção a uma caverna cheia de camadas demasiado obscuras. São as famosas camadas obscuras da história do pensamento ocidental sobre o qual se tem construido as raízes da fragilidade de uma rede (ontológica). Uma rede tão frágil, e também tão cheia de buracos. Pensamentos, histórias e buracos. Buracos da história do pensamento. Eis a tautologia imaginária de uma busca que nos conduz até aos lugares mais recônditos de uma qualquer infância perdida. Escondida. Aberta e partida no chão estaladiço do Caramol. Onde será  construído um abrigo laboratorial da forma (real e virtual). Um abrigo ontológico. Ou uma casa em forma de arquitetura móvel (plataforma interactiva). Ou apenas uma caverna?
Um buraco. Uma toca. Uma bolha de proteção. Um túnel de salvação. Uma biblioteca infinita escavada no chão de uma rocha inflamada de paixão. A paixão demasiado  esquizofrénica de um terreno inclinado. A inclinação de um canal de irrigação. Um fluxo. Uma raíz. Um sopro. Um veio.  Uma esfera ondulada. Ou apenas um retiro espiritual? Banal. Tosco. Amplo. Frágil. Desmedido. Branco. Brando. Retirado. Libertado. Utópico. Sexual. Virtual.
Esta será a toca solitária ou a base criativa de uma obra que se aproximará da luz minimalista de um candeeiro natural destinado a iluminar as trevas do futuro da história da humanidade. Uma humanidade sem memória? Uma memória qualquer? A memória de um lugar? Qualquer lugar poderá servir ainda para nos abrigar da força inquietante da memória ? A memória da história de um lugar pós-histórico? Ainda assim um lugar. Um lugar de memórias. As memórias de um lugar. Um lugar a construir dentro da espiral vertiginosa do nosso cérebro....

Eusébio A.
                                                                                                                                                                   

sexta-feira, 22 de julho de 2011

ONLINE/OFFLINE





(AS REDES SOCIAIS E A MISTERIOSA GUERRA DAS SENSAÇÕES).






«Estamos sós com tudo aquilo que amamos».
                                                       (Novalis)
Ainda agora regressei ao “espaço virtual” e já estou farto deste jogo demasiado interactivo das redes sociais (facebook, mySpace, twitter, Hi5, linkedin, flixster – a lista, essa, seria verdadeiramente interminável), aí onde o que interessa não é tanto chegar a onde quer que seja, mas simplesmente navegar e deslocar-se indefinidamente, não só na expectativa de alcançar alguns níveis de satisfação pessoal, mas também na expectativa, ainda que virtual, de exorcizar algumas das muitas limitações e insuficiências do real, já que tanto é por aqui que “toda a gente passa", como é por aqui que não passa ninguém. Na prática, o que parece acontecer é que tal como estar desligado (offline) é uma grande ameaça, também estar conectado (online) «é estar verdadeiramente fodido», por isso, que venha o diabo e escolha a melhor opção. Quanto a mim voltarei novamente daqui a mais umas horas ou dias ou semanas ou meses. Agora vou mas é sentir a escala reduzida das grandezas naturais e respirar o ar puro das mais baixas camadas da atmosfera onde um dia fomos (quase todos) habituados a viver...
A 1
1. manhã de chuva
<>
                                          2. noite de tempestade
<>
 
                               3. caminhada no deserto
                               A. 23 (cores, v.d).
                               2011
                               Eusébio A.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AS TECNO-MICRO-UTOPIAS  DO CORPO CONTEMPORÂNEO




«Só os gulosos é que sabem viver...».
(Stig Dagerman)

Quando falamos do corpo, falamos também, quase sempre, da necessidade ontológica de recorrer não só ao imaginário do perigo, à metáfora da violência e aos fantasmas da provocação, como também ao imaginário dos jogos eróticos, dos rituais afrodisíacos e da violação de todas as proibições, quase como se quiséssemos sentir apenas o prazer imediato da vulnerabilidade de viver «rente aos limites incómodos do paradoxo» diria Stig Dagerman.

Do paradoxo de não chegar à intimidade das pessoas e das coisas face à constante virtualização das relações humanas, porque afinal vivemos cada vez mais afastados da intimidade do corpo ou da carne ou da vida, à medida que nos rebolamos em cima do teclado, em cima do ecrã, em cima do "rato", quase como se toda «a proibição existisse apenas para ser violada», quase como se todos os limites aparentemente ilimitados existissem apenas para ser consumidos, devorados, mastigados em nome da busca de uma qualquer felicidade ou consolação demasiado imediata, isto apesar da «nossa necessidade de consolo ser impossível de satisfazer» diria ainda Stig Dagerman.

Nesta perspectiva, Dagerman continuaria assim a escrever; «Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a sua própria caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta (do ecrã). Quase sempre atinjo o vazio, mas de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo do sopro do vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê entre os dedos? (…). Tendo tudo isso, é sempre escasso aquilo que tenho!».

Apesar do sentimento algo ameaçador/perturbador com que somos confrontados ao ler estas palavras, a verdade é que esta espécie de «neurose obsessiva» da ordem do consumo imediato das imagens tende a impelir-nos a desejar intensamente aquilo que nos falta. Será ainda esta noção de «falta» um dos grandes motores daquilo que nos leva sempre a desejar aquilo que mais desejamos? Afinal, desejamos sempre aquilo que nos falta? Falta-nos sempre aquilo que mais desejamos? Enfim, tudo isto mais não parece do que um interminável jogo ou carrossel de relações demasiado tautológicas.

É por isso que Rosalin Krauss afirma que esta «lógica do desejo», mais do que uma lógica meramente especulativa, agora, é uma lógica da ordem do «real», da «ordem dos corpos», da ordem das «máquinas», tal como foram estudadas pela dupla Deleuze-Guattari no seu Anti-Édipo, quando estes referem ao escrever que «o indivíduo completo desapareceu. Agora terá dado lugar a uma série de órgãos reais e virtuais – seios, ânus, boca, vagina, pénis – que indiciam todos os desejos imperativos de uma qualquer sociedade ainda por vir (tecno-micro-utópica).

No fundo, é esta eterna «lógica do desejo» (tão antiga quanto o próprio humano) que parece estar na origem do chamado pensamento criativo ou disruptivo, ou seja, precisamente aquele pensamento que mobiliza constantemente o fetichismo das imagens violentamente sexualizadas do «peep show» contemporâneo (protagonizado pela pintura, pela fotografia, pela publicidade, pelo vídeo, pela televisão, pelo cinema, pela Internet, etc), e as transforma numa espécie de plataforma tecno-micro-utópica. Eis assim algumas das mais variadas obsessões ligadas agora ao prazer auto-erótico da imagem exibicionista do humano ao transformar assim o corpo numa espécie de valor facilmente «transaccionável».

Tão transaccionável, que consegue levar milhares de pessoas da alta sociedade portuguesa a descer às caves imundas de um hotel/matadouro (cheio de água e lama estagnada), só para ver uma artista nua a roçar-se (em poses diversas) sobre o cadáver inquieto de um antigo militar da força aérea.
Eusébio A.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A ARTE CONTEMPORÂNEA PODE MATAR?

SEMPRE EM MOVIMENTO...

«Já não é para as estrelas que nós lançamos o nosso olhar.
Agora  nós olhamos é para os ecrãs».

(Paul Virilio).

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ENTRE O PAÍS QUE TÍNHAMOS E O PAÍS QUE TEMOS. DESCUBRA AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS (SE FOR CAPAZ...).


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,

fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,

aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,

sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,

pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem

donde vem, nem onde está, nem para onde vai;

um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,

e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que

um lampejo misterioso da alma nacional,

reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,

não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,

sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,

descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,

capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,

da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa

sucedam, entre a indiferença geral,escândalos monstruosos (...).


Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;

este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,

tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara

ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,

incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico

e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,

iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,

e não se malgando e fundindo, apesar disso,

pela razão que alguém deu no parlamento,

de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.