sexta-feira, 7 de agosto de 2009

NOTAS SOBRE A TEORIA DA VIAGEM OU TRAÇOS DO NOMADISMO CONTEMPORÂNEO (parte I).



Fig. 7 -A caminho de Veneza


«Toda a narrativa é uma narrativa de viagem»
( Michel de Certeau).


Fechar os olhos. Abrir um livro ao acaso. Saborear uma barra de chocolate, e um vinho de Bordeaux ou um cálice de champanhe de Epernay. Mergulhar nas águas transparentes do oceano e viver rodeado de azul a bordo de um cruzeiro qualquer em alto mar. Fazer escala em Barcelona, Bruxelas, Praga, Viena, Berna, Génova, Veneza, Roma, Florença…etc. Desejar o burburinho de vilas e cidades tão reais como a lista interminável das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, até que as âncoras se levantem, os motores voltem a funcionar, e a mecânica da viagem acelere o meu desejo de partir (qual nómada inquieto), quase como se nada me conseguisse deter, como se nada me fizesse parar, à medida que tentarei fugir do anestesiante espaço do estar (sedentarismo) para o interminável espaço do andar (nomadismo).

Andar…Andar…Andar…Apanhar o comboio para Paris. Visitar a Tenda de Ben, e o Museu Portátil de Duchamp, mas também a Cruz Negra, e o Homem que corre de Malévich, etc. Depois, é só apanhar o autocarro para Amesterdão e Berlim. O barco para Copenhaga e Estocolmo. O TGV para Varsóvia e Praga. O comboio para Viena e Budapeste. O camião para Zagreb, Belgrado, Sarajevo e Bucareste. O avião para Istambul e depois para Nova Iorque. O metro para Manhattan, e o táxi para a Times Square…mais uns telefonemas para Tóquio, uns e-mails para Lisboa, outros para Moscovo, e ainda outros não sei muito bem para onde. Entretanto, aproveito para descansar num banco do jardim junto à estátua de Andersen, à medida que vou balbuciando algumas palavras de protesto contra a famosa instalação de Christo, no Central Parque, enquanto esta se balança ao sabor do vento agitado da manhã, quase como o Pêndulo de Foucault (U. Eco) a balançar dentro da mochila que carrego às costas. A seguir não posso deixar de passar pelo misterioso coração de Nova Iorque, esse “museu alternativo” (paredes do metro) que viu nascer alguns dos primeiros trabalhos (graffitis) de Basquiat, de Keith Haring, e de tantos outros artistas, antes destes se terem deixado engolir pelos tentáculos do mercado da arte.

Tantas coisas a visitar em Nova Iorque (o Moma, o Metropolitan Museum, o Frick Collection, o Museum of Natural History, o River Café, a Brooklyn Bridge, a Broadway, o Empire State Building, o Central Park, a Washington Square, o Rockefeller Center, mas também os famosos cafés literários da Greenwich Village, a atmosfera exótica da Chinatown, a assustadora decadência de Bowery, o ambiente pesado do Bronx (Zoo), a poesia revivalista dos artistas boémios da nova “beat generation” do SoHo, para além de uma curta passagem pela capital negra dos Estados Unidos - o Harlem, etc, etc, etc), tudo isto antes de partir pelas infindáveis estradas poeirentas do Texas e do México (rumo ao sul) pelos caminhos anteriormente trilhados pelo atormentado Jack Kerouac. Depois é só apanhar o avião para Londres, agora, para ver uma exposição dos Young British Artists (YBAs) na nova Saatchi Gallery (entre chaminés de mármore, colunas clássicas e tectos abobadados). Entretanto encontro no Time out (a bíblia dos guias londrinos) uma nova exposição de Tracey Emin, e da sua famosa cama cheia de esperma ontológico (Prémio Turner em 2000).

Depois apanho boleia até Brighton, passo novamente por Paris, e sigo em direcção às ruas estreitas e compridas de Toledo (pela puerta de Visagra/Séc XVI). Aqui é só subir e descer ruas. Subir e descer escadas. Andar de gatas (ao ritmo da Idade Média). Tropeçar. Cair. Levantar. Quase como se quisesse muscular a lucidez dos passos que acabo por desenhar no chão da cidade (povoada de “quadros-cópias” de El Greco), por onde acabei agora de passar ao tropeçar em placas de trânsito que me indicam a saída em direcção a Portugal. Tudo isto para dizer, que podia estar (apenas) sentado à frente do computador, ligado à net, ligado ao mundo, ligado à vida, a viajar pelos labirínticos bosques da ficção ou da hiperficção, quase como uma espécie de turista sentado (ciberflâneur) à medida que seria hiperestimulado pelos múltiplos dispositivos da experiência simulacral desse jogo alucinatório das novas «sensibilidades artificiais» (o mundo à distância de um click).

Mas a verdade, porém, é que nada parece substituir esta vertiginosa vontade de errar, de deambular, de transpirar, de tocar, de gritar, de traçar e de experimentar o caminho com as nossas próprias mãos cravadas no chão, no ar, na terra, no mar, e não apenas no teclado. Quase como se quiséssemos sentir na pele, o calor, o frio, o sabor e o cheiro das palavras do poeta António Machado quando este escreve ao dizer que «não há caminhos, há que caminhar. O Caminho faz-se caminhando», tal como Henri Michaux, a bordo do seu “Boskoop”, no mar, a caminho do seu famoso Equador.


LINHA B. - Até que ponto é que uma viagem pode mudar uma vida? Até que ponto é que uma vida se pode mudar com uma simples viagem?

LADO C - Em permanente construção...

Eusébio Almeida a caminho do deserto…

2 comentários:

Susana Rosa disse...

Continua a esgravatar no abismo, para encontrar o fio do horizonte.

Eusébio Almeida disse...

Obrigado pela sugestão. De facto, só me resta continuar a esgravatar, não tanto para encontrar o fio do horizonte, mas para procurar pequenas unidades de sentido que me ajudem a construir uma nova versão da realidade, por mais diversa e paradoxal que ela seja.