DO FLÂNEUR AO CIBERFLÂNEUR
Breve digressão pelas práticas interactivas do espaço contemporâneo
(Artigo completo, conforme foi publicado na RCL, nº42)
«Toda a
narrativa é uma narrativa de viagem.»
(Michel de
Certeau)
Depois
da falência declarada dos chamados grandes sistemas teóricos com pretensões de
explicação absoluta da realidade. Depois das inúmeras «crises de sentido»
operadas pelos mais variados autores. Depois da estranha sensação de que todos
ou quase todos os fundamentos teóricos ruíram ou de que todos ou quase todos os
projectos ideológicos falharam. Depois dos múltiplos escombros deixados à
deriva pelas «filosofias da suspeita» (Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, etc).
Depois da dissolução vertiginosa de todas estas «grandes narrativas» (Lyotard),
igualmente postuladas por outras tantas áreas da teoria do conhecimento, a
verdade é que todos estes grandes «abalos históricos» mais não parecem ter
feito do que contribuir para o atribuladíssimo processo de «desestruturação» ou
de instabilização dalgumas das chamadas verdades últimas acerca da inquietante
história da humanidade, mostrando assim, uma vez mais, algumas das múltiplas
fragilidades desse velho sujeito ondulatório que é o humano. É verdade que
depois destes grandes «abalos históricos» ainda continuariam a surgir muitas
outras “categorias” ou “estruturas”, agora consideradas muito mais frágeis, flexíveis,
flutuantes, plásticas, elásticas e líquidas, sempre na tentativa, tantas vezes
inglória, de preencher os buracos ontológicos deixados à superfície da terra
pelas falhas das categorias anteriores. Neste sentido, as novas categorias
ditas então de pós-estruturalistas viriam assim a assumir uma tão grande diversidade
de nomes que é quase impossível fazer aqui uma apresentação, mesmo que breve, do
seu respectivo estatuto conceptual. De qualquer forma, diríamos apenas, ainda para
reforçar algumas das ideias anteriores, que todas estas novas “categorias”, ou
melhor, que a profusão destes novos operadores conceptuais ditos agora de mais
criativos, flexíveis, disseminativos, expansivos, colaborativos (muitos deles
de matriz altamente digital), entretanto viriam a assumir nomes tão variados, tais
como, por exemplo: disseminação, contaminação, oscilação, hibridação, conectividade, trajectividade, navegação, interactividade, ubiquidade,
cibercultura, hiperrealidade, plasticidade, simulação, colaboração, ligação,
telepresença, ciberespaço (isto só para citarmos apenas algumas das
noções mais conhecidas), numa espécie de vertiginoso «enfeitiçamento» ou de erotização
generalizada da experiência contemporânea. Ou seja, na prática, esta espécie de
«atracção fatal» ou esta euforia generalizada vivida em torno dos mais variados
feitos e efeitos da Web, que os novos
media parecem estar a proporcionar,
mais não parece fazer do que confirmar tudo aquilo que alguns de nós já
tínhamos verdadeiramente intuído, ou seja, que a única “certeza que ainda nos parece
válida”, é a de que estaremos sempre em trânsito ou em permanente movimento e
outras tantas vezes simplesmente à deriva, não só à medida que vamos correndo o
risco de perder as coisas que mais desejamos ou as pessoas que mais amamos (esse
alguém que largamos a favor de uma nova viagem), mas também à medida que vamos
alimentando o desejo e a própria necessidade, tantas vezes obsessiva, de
continuar verdadeiramente conectados a mais alguém ou a mais alguma coisa, tal
como refere Steven Shaviro (2002, p.197), quando reforça a ideia de que «conectar
é preciso». Para mais tarde continuar a dizer que «o verbo conectar é
uma verdadeira obscenidade no mundo de Noir,
o romance de ficção científica de K.W. Jeter. Lá as pessoas estão sempre a
dizer coisas tais como: «espera aí que eu já te conecto», ou ele «que se conecte»,
ou «vai-te conectar» (Jeter, 1999: pp.192-200). Em resumo, «quem está conectado
está verdadeiramente fodido»! Ou seja, na prática, «toda a conexão tem o seu
preço (…)»7. E o preço de estarmos ou não conectados, de estarmos ou
não ligados, é o preço que pagamos ou que temos vindo pagar, por nos
continuarmos a “rebolar” excessivamente em cima do teclado, por nos continuarmos
a “rebuçar” em cima do rato ou por continuarmos simplesmente a “fazer amor” com
o ecrã, ele que incita, induz, seduz, de um para muitos e de «muitos-para-muitos»
(em rede), quase como se fôssemos uma espécie de fantasmas interactivos
incapazes de resistir aos reflexos demasiado «atractivos» desse extraordinário
«mapa de intensidades» (Deleuze), repleto de imagens soltas, de viagens
imprecisas e de ligações tantas vezes hesitantes e interrompidas, mas que
entretanto vão adquirindo muitas outras dimensões, muitas outras camadas
(camadas sobre camadas de sentido), ou repetições de repetições, ou seja, «repetições
do mesmo», «repetições do diferente», quase numa espécie de esquizofrenia
compulsiva de «diferença e repetição, repetição e diferença», «diferença e repetição,
repetição e diferença» diria Deleuze para complicar ainda mais os contornos um
tanto ou quanto indefinidos desta problemática deveras aliciante.
É
nesta perspectiva, aliás, que continuaremos a navegar, sem mapa, sem guia e sem
qualquer direcção demasiado precisa, não só na tentativa de experimentarmos uma
série de passagens ondulatórias e de atalhos interactivos, que entretanto nos
haverão de conduzir a uma determinada infinidade de «estados virtuais», todos
eles agora verdadeiramente agenciados segundo a ordem dessa nova geografia
poética do espaço reticular (ciberespaço), mas também na tentativa de traçarmos
os contornos incertos de mais um desdobramento qualquer, tantas vezes repleto
de outros tantos atalhos, saltos, interrupções, camadas, imagens, distracções e
tantas outras oscilações desnecessárias (as viagens na e da rede tem destas
coisas), mas que, no fundo, acabarão por nos ajudar a prosseguir esta viagem
interactiva, sempre no sentido de traçarmos uma nova etapa que nos permita
alimentar o simples desejo de andar de um lado para o outro (na qualidade de ciberflâneurs), e não tanto o desejo de
chegar a onde quer que seja. Ora, na prática, todas estas operações irão depender,
naturalmente, quer do tipo de necessidades do respectivo nómada digital (ciberflâneur), e dos trajectos que este venha a traçar e a percorrer, quer ainda
dos diferentes níveis de satisfação (prazer), ou de dificuldade pelos quais ele
entretanto tenha que passar até conseguir alcançar aquilo a que se propôs
inicialmente. Estamos a falar, neste caso concreto, da experiência de uma
viagem que se apresenta como uma espécie de jogo interactivo ou ciberviagem, na qual o que interessa não
é tanto chegar, mas navegar, deslocar-se indefinidamente, não só na expectativa
de alcançar alguns níveis de satisfação pessoal (prazer), mas também na
expectativa, ainda que virtual, de exorcizar algumas das muitas limitações e
insuficiências do real, já que, para todos os efeitos, «é por aqui que toda a
gente passa, mas também é por aqui que não passa ninguém», quer à maneira do «Pela estrada fora» de Jack Kerouac,
quer ainda à maneira do «Pelas
auto-estradas fora das novas redes sociais» de O`Reilly, aí onde acabamos,
quase sempre, por coleccionar uma infinidade de «ilusões», e outras tantas sensações
verdadeiramente paradoxais. Aliás, a existência dalguns destes paradoxos devem-se
precisamente ao facto de vivermos vertiginosamente dentro e fora (on/off) da bocarra desta enorme rede
digital, ela que nos coloca, quase sempre, não só perante a ameaça da mobilização
infinita das «formas e das imagens», mas também perante o fetiche imediato das mais
variadas ligações e desligações (em nome de uma qualquer ligação total?), não
nos apresentando assim qualquer tipo de desfecho final, o que nos levará a
deduzir que estar «desligado é a grande ameaça», e que «estar conectado é estar
completamente fod…», diria novamente Shaviro (2002, ob. Cit. p.197), para
baralhar ainda mais os vários elementos desta famosa equação que tende a
caracterizar uma boa parte do mundo da chamada era digital.
No
fundo, o que nós sabemos ou ainda julgamos saber é que a plasticidade destas novas
práticas do espaço interactivo da viagem, feitas a partir da simulação
sensorial, da virtualização da experiência, da estimulação imediata dos sentidos,
da recombinação das imagens e das formas e da permanente criação e
reactualização dos mais variados estados de existência virtual, conseguem,
apesar de tudo, alimentar-nos o desejo, a necessidade e a esperança de continuar
a viajar, a navegar e a flutuar permanentemente, a fim de vivermos menos mal perante
algumas das inúmeras limitações e insuficiências do real (mesmo que vivendo virtualmente),
quase como se assim conseguíssemos finalmente viver dentro e fora de uma
espécie de «território sem mapa», ou dentro e fora desse mapa sem qualquer tipo
de território real, já que, para todos os efeitos, a rede parece labutar sempre
sem parar para que o grande «jogo da vida» acabe, afinal, por nunca terminar. O
grande problema parece surgir, diria ainda Steven Shaviro (2002: p. 202) a
propósito da rede digital, quando ao cabo de algum tempo, ela (a rede) já não
nos faz “tripar”, levando-nos assim a depender de uma dose cada vez maior (de
estímulos) apenas para não andarmos a cair, ou simplesmente para nos continuarmos
a manter de pé. Nesta perspectiva, diríamos apenas, tal como Duchamp, que se «a
arte é uma droga que gera dependência», então as actuais redes tecnológicas serão
exactamente o quê? A propósito desta questão, li em qualquer lado, se bem que já
não me lembre exactamente a onde, que «tudo na vida pode ser uma droga» (o
amor, o sexo, a família, o dinheiro, o trabalho, a linguagem, a cidade, a
leitura, tal como a comida, o corpo, a pintura, a escrita, a fotografia, o
cinema, o jogo, a tecnologia, etc), embora eu continue a achar, neste caso
concreto, que mais do que uma «droga», as actuais redes tecnológicas podem ser
uma espécie de «extensores da criatividade» (Abraham Moles), compostos por uma
infinidade de «estruturas variacionais», não só capazes de potenciar os mais
variados estados de espírito, quase como se fossem uma espécie de «máquinas de
emaranhar paisagens interiores» diria acertadamente o poeta Herberto Hélder,
mas também capazes de nos retirar a camisinha protectora da razão, a fim de
navegarmos, descomplexadamente, vezes sem conta, dentro e fora desse grande
oceano interactivo das redes sociais, na tentativa, tantas vezes inglória, de
mostrar que afinal ainda estamos aqui.
-
Olá! Olá! Estamos aqui! Estamos aqui! Venham salvar-nos deste naufrágio, diria uma
das vozes mais persistentes do Facebook,
mas a verdade é que ninguém os parece estar a ouvir. Aqui, simplesmente, ninguém
parece ter ouvidos para ninguém. Mais um clique e outro, e ainda outro, e mais
outro, e assim sucessivamente, sem parar, quase até à exaustão. A verdade é que
aqui não há nada para salvar, diria agora uma das vozes mais inquietantes do Twitter. Mas nós insistimos, na
tentativa de nos tornarmos um pouco mais “populares” e assim menos infelizes, e
então twittamos e facebookamos vezes sem conta, sem parar. Afinal de contas, eu facebooko, tu facebookas, ele facebooka,
nós facebookamos, vós facebookais, eles facebookam, ou então eu twitto,
tu twittas, e assim, uma vez mais,
sucessivamente, sem parar.vós
facebookais
eles facebookam Ou então conforme nos diz ainda Shaviro, quando escreve:
«Assim que tal acontece, pouco importa que se esteja agarrado ou não, como
receia Zizek, “apenas a simulacros virtuais” ou que, como afirma Heim em tom
mais optimista, só agora se consiga “contactar com a realidade”» (Shaviro,
2002: p.206). Porque, afinal, o que importa é estar aqui, ali, acolá, além, em
qualquer lado, em todo o lado. Quase como se fossemos os detentores do dom da
ubiquidade? Ou então, como escreveu Jeter (1999), em Noir, fazendo ainda uma referência evidente à fórmula básica da
dependência, a partir da célebre «álgebra das necessidades» de W. Burroughs (2002),
amplamente desenvolvida no romance Naked
Lunch, quando escreve: «neste momento, uma pessoa pagará qualquer preço
apenas para se sentir outra vez normal» (Jeter, 1999: p.460). É evidente que a partir
daqui todas as fronteiras vacilam. Tal como no automóvel, mas agora com mais
velocidade e intensidade, reduzimos e aceleramos vertiginosamente apenas para
tentar ultrapassar tudo aquilo que ainda nos possa aparecer à frente. A
adrenalina, essa, sobe no momento em que largamos a embraiagem. Depois disso, só
uma certeza nos guia. A certeza de que não sabermos exactamente para onde vamos
ou em que direcção é que estamos exactamente a circular. Mas, afinal, não é
verdade que nos podemos simplesmente desligar (offline)? Será que podemos? Perguntem a quem por lá anda durante
umas boas horas seguidas por dia, e logo obterão a resposta, que não será nada animadora,
na maioria dos casos.
Enfim,
se é verdade que não sabermos exactamente por onde vamos. Se é verdade que não
sabermos exactamente para onde vamos. Também não é menos verdade, que através
de todos estes feitos e efeitos da Web, nós
podemos ir não só por aqui e por aí, mas também por ali, por acolá, por além ou
por outro lado qualquer, numa infinidade de trajectórias possíveis, quase como
se andar ou fazer andar fosse agora uma maneira de fazer existir as mais
variadas formas de existência. Existências meramente reais ou virtuais? Reais
ou virtuais, isso agora pouco importa. O que importa é fazer existir uma nova pluralidade
de possibilidades criativas que nos permitam dar a ver, dar a ver de outro
modo, de modo diferente, na tentativa de fazer com que esta relação um tanto ou
quanto erótica ou fetichista permaneça sempre bem activa, fazendo assim com
que os outros existam e com que nós próprios nos recusemos a não existir, à
medida que formos criando e reinventando, para todos os efeitos, novos modos de
existência (entidades reais e virtuais), mas também novas práticas de
sobrevivência, a partir desses outros tantos modos de deslocação, simulação e
interacção, agora amplamente proporcionados pelas mais variadas tecnologias
digitais. Sempre na tentativa de chegar um pouco mais longe. Chegar um pouco mais
longe? Fixar o fugidio? Aprisionar o eco? Congelar o instante? Consumir o
efémero? Agarrar o vento? Encontrar a «pílula da felicidade?» Se é certo que
não possuímos qualquer tipo de resposta definitiva para dar, nem sobre este
assunto, nem sobre muitos outros, se é certo que se perderam as chaves da
interpretação séria e rigorosa das imagens do humano e do mundo, também não é
menos certo que o melhor é pensarmos que o «preço da esperança é a vida» (W. Benjamin),
quase como se quiséssemos fabricar uma «fenda na sombrinha poética do real», à
maneira de Lawrence, tal como nos diz Deleuze e Guattari (1991), quando escrevem
num texto verdadeiramente poético, ao dizer que «os homens fabricam
continuamente uma sombrinha que os abriga, no interior da qual traçam um
firmamento e escrevem as suas convenções, as suas opiniões, mas o poeta, o
artista, pratica uma fenda na sombrinha, rasga mesmo o firmamento, para fazer
passar um pouco do caos livre e ventoso e enquadrar numa brusca luz uma visão
que surge através da fenda (…). Serão sempre necessários outros artistas para
fazer outras fendas, operar as destruições necessárias, talvez cada vez
maiores, e restituir assim aos seus antecessores a incomunicável novidade que
se tinha deixado de saber ver (…). Nesta perspectiva, o pintor não pinta numa
tela virgem, nem o escritor escreve numa página branca, mas a página ou a tela
estão desde logo de tal modo cobertas por «clichés» preexistentes,
preestabelecidos, que é necessário antes de mais apagar, limpar, laminar, ou
até rasgar para fazer passar uma corrente de ar puro vinda do caos ou de outro
lado qualquer» (Deleuze e Guattari, 1991: p.178).
Esta
é uma daquelas extraordinárias passagens que nos fazem lembrar a mítica
personagem de Ulisses, lutando, neste caso, para se libertar das amarras de uma
espécie de labirinto global (agora da ordem do virtual), para dentro do qual
parece haver cada vez mais pessoas a querer entrar, mas dentro do qual parece
ser cada vez mais difícil e até perigoso viver. Tudo isto nos obriga a pensar
seriamente sobre a maior ou menor pertinência dalgumas destas questões ou pelo menos
a não ficarmos demasiado parados, continuando assim a explorar tudo aquilo que
ainda houver para explorar, não tanto no sentido de «esticar a corda» até ela
partir, mas no sentido de tentar perceber as palavras de Blanchot, quando este
escreve sobre o arrepio das palavras de Pascal «(…) ante o silêncio eterno do
espaço, e o arrebatamento de Joubert, ante o céu constelado de vazios, e que
Mallarmé dotou de uma experiência nova: o espaço como aproximação a um outro
espaço, origem criadora e aventura do movimento poético. Se ao poeta pertencem
a angústia, a preocupação da impossibilidade, a consciência do «nada», e esse
tempo de aflição que é o seu próprio tempo (...)»8, então ao
viajante, ao andarilho, ao artista, ao nómada inquieto, e em particular ao ciberflâneur “pertencerão”, certamente,
algumas das palavras de Baudelaire, quando este afirma que «uma das condições essenciais para
experienciar o mundo, é deixar-se afectar pelo presente (...), e por todos os
detalhes em que este ainda se exprime» (Baudelaire, 1993: 79)9. Por
isso, sem a veleidade de me querer colocar no lugar daqueles que ainda se acham
capazes de “interpretar” os múltiplos e variados sintomas do «presente». A
verdade é que o presente tende a aparecer-nos, cada vez mais, como algo verdadeiramente
ininterpretável. Partindo deste princípio básico, mas não me querendo furtar à
ingrata responsabilidade de pensar (afinal, quem é que ainda se atreve a interpretar
o que quer que seja?), eu diria apenas que o presente parece exprimir-se, cada
vez mais, através da inteligência, da criatividade, da capacidade, da
competência e da coragem daqueles que não desistem de lutar a favor das mais
variadas formas de liberdade (contra todas as formas de absolutismo), na
tentativa, tantas vezes inglória, de conseguir, pelo menos, levantar algumas
questões acerca dos principais sintomas que tendem a caracterizar o chamado
nosso tempo (se bem que tempo nenhum nos pertença). Nesta perspectiva, nós diríamos,
uma vez mais, que o presente parece continuar a exprimir-se através do
pensamento, da voz e dos gestos, cada vez mais frágeis, de todos aqueles que ainda
se dispõem a navegar dias e noites a fio. O tempo passa, foge, escapa-se-lhes
por entre os dedos, quase como se este ainda quisesse agarrar aqueles que se
dispõem a navegar pelas margens flutuantes desse imenso e intenso oceanário
digital, onde afinal acabamos quase todos por criar, partilhar e reactualizar
algumas das nossas mais íntimas ligações (em forma de rede móvel), quase como
se a «rede tecnológica» fosse uma espécie de vibrador repleto de
características um tanto ou quanto «alucinogénicas» (Ernst Junger) ou
psicoactivas, ou seja, encontrando-se assim, para todos os efeitos, sempre
demasiado bem preparada para criar, oferecer, garantir e perpetuar a
satisfação, quase infinita, das nossas mais íntimas e variadas necessidades, sejam
elas reais ou meramente virtuais (eis assim a natureza verdadeiramente psicotrópica
da arte, da cultura, das tecnologias, e da vida contemporânea em geral).
Se é verdade que a satisfação da
maioria destas necessidades pode estar “devidamente garantida”, também não é
menos verdade que o sabor dessa satisfação pode ser demasiado amargo, mas a cor,
essa, é certamente o azul. E o azul, neste caso concreto, só pode ser o azul-cobalto
(tão raro na natureza), ou então o «azul eléctrico» do mar, onde acabamos por
naufragar de dia e de noite, sempre sem parar. Sem deter o poder, copiar,
cruzar, inserir, ver, editar, abrir e fechar as janelas, mas também recuar,
avançar, partilhar, navegar, ou seja, na prática nada nos parece restar a não
ser continuar a viver sob o efeito desta espécie de «estética da
interactividade», e da colaboração diria S. Penny. Quase sem ligação ao espaço
(físico), mas ligados ao ciberespaço. Quase sem ligação ao local
(terra/território/topologia), mas ligados a uma espécie de pensamento global.
Quase sem ligação ao tempo, mas ligados aos mais variados fenómenos do cibertempo. Quase sem ligação à vida
(real), mas ligados a muitas outras «formas de vida» (entidades virtuais). Enfim,
clandestinos do futuro. Terroristas do passado. Trepadores de montanhas
virtuais. Praticantes de saltos mortais (com ou sem vontade, já que às vezes os
fusíveis não resistem, e nós acabamos por nos manter fora da rede). No fundo, esta
é mais uma tentativa de ligar e desligar o cérebro do computador até perder de
vista o horizonte que nos liga à outra margem do ecrã. Partes de um «ecrã
total»? «Arte da hibridação»? (Couchot). Arte da lubrificação? Da lubrificação
da vida? Ou apenas atalhos e retalhos de um «falsificador de imagens»? De um
repetidor de palavras? De um «pornógrafo demasiado electrónico»? O velho Jack
London, diria apenas: «Fogos-fátuos, vapores de misticismo, desarmonias psíquicas,
orgias anímicas, gemidos no meio das sombras, ligações bizarras, véus e tecidos
de palavras e de imagens, subjectividades balbuciantes, sondagens às cegas e
divagações (ondulantes), fantasias ontológicas, alucinações (técnicas, poéticas
e por vezes também demasiado patéticas), onde se parecem materializar, apesar
de tudo, alguns dos maiores fantasmas da esperança» (London, 1975: p.232), a que
todos nós, certamente, precisaremos de continuar ligados para não perder de
vista tudo aquilo que ainda verdadeiramente se passará à nossa volta, sob pena
de cairmos apenas no chão ou simplesmente deixarmos de nos manter de pé (o que
não seria de todo necessário, nem sequer desejável).
Enfim, gestos e passos de
«filigrana», a provar «que não somos, nem donos da vida, nem da narrativa, nem
da história (nem das viagens, nem das viagens do corpo em movimento, nem do
movimento do corpo, nem do corpo da viagem), nem de quase nada», escrevia um
belo dia Jorge Listopad, no Jornal de Letras, a propósito dos que amam a dança,
dos que amam os pássaros, dos que amam as estradas, dos que amam o movimento,
mas também de todos aqueles que amam a «infinidade das suas dobras». O que nos
faz pensar, e para terminar este artigo (que já vai demasiado longo no número
de páginas) na «cidade de vidro», da célebre Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster, e também numa das suas
personagens errantes (Quinn/William Wilson), à medida que esta vai deambulando
vertiginosamente pelas ruas labirínticas da cidade de Nova Iorque. Essa cidade
aparentemente inesgotável ou esse «labirinto de passos intermináveis», para
quem «o movimento era a essência do acto de pôr um pé diante do outro e seguir
a errância do seu próprio corpo. Todos os lugares se tornavam semelhantes
caminhando assim sem destino, e deixava de ter importância o sítio onde se
encontrava. Nos seus melhores passeios, conseguia atingir o sentimento de que
não estava em sítio algum. E isto, afinal, era tudo o que pedia às coisas: não
estar em sítio algum» (Auster, 2004: pp.10-11). Quase como se «o mundo inteiro
fosse feito apenas de plasticina», diria ainda Gil Heitor Cortesão, ou então, como
se o mundo fosse feito apenas da voz do movimento e o movimento fosse um grande
monitor aberto às mais variadas «formas de vida» (Agamben), já que é sob estas
mais variadas «formas de vida» que tudo parece continuar a mudar, para que
assim nem tudo fique na mesma. Porque, infelizmente, todos nós sabemos
demasiado bem, como é fácil nos deixarmos ficar à espera, como é fácil
deixarmos de nos mover, como é fácil ficarmos demasiado parados, ou muito pior
do que isso, como é fácil adormecermos ou deixarmos que nos adormeçam. Porque a
verdade é que se nos deixarmos adormecer, lá virá o dia e a hora em que «nos levantaremos
da cama, com a estranha sensação de que conquistámos o mundo inteiro»10.
Depois, se tivermos um pouco de sorte e também de ousadia lá «podemos,
eventualmente, ficar à espera do comboio do futuro numa qualquer paragem do
autocarro» dizia um verso de Sérgio Godinho, em nome dessa extraordinária
experiência que é a experiência da liberdade de podermos continuar a pensar e a
questionarmo-nos livremente sobre as urgências do tempo e do espaço em que nós
próprios vivemos. Neste sentido,
porquê adiar a viagem de continuar a viajar, já que «alguma vez se há-de ter
que parar?», interrogava-se Aristóteles no tempo em que as pedras ainda falavam
com os humanos e os humanos ainda se podiam dar ao luxo de «não terminar dentro
de uma lixeira qualquer». Por isso, continua Pessoa, ainda pela voz de Álvaro
de Campos (o da Tabacaria): «Come chocolates, pequena (e viaja diríamos nós
também). Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates (e viagens)».
Assim parece tudo muito fácil, mas a verdade é que, às vezes, muitas vezes até,
as soluções parecem não estar exactamente aí, obrigando-nos assim a procurá-las
noutro sítio qualquer. Resta-nos, por isso, continuar a procurar o «braço
certo», conforme nos diz, de forma elucidativa José Bragança de Miranda, quando
escreve: «A vir, sendo o braço certo, poderá ser o braço de um outro homem, de
um «monstro» ou de um «cyborg», mas
será sempre um braço humano» (Bragança de Miranda, 2002: p.193). Um braço
humano que se ligará a outro braço, que entretanto nos ajudará a procurar um
outro braço, e outro, e ainda outro, e mais outro ainda, até perdermos de vista
a enorme quantidade de braços a que precisaremos certamente de estar ligados para
que o mundo possa continuar a andar verdadeiramente para à frente…
Almeida, Eusébio - «Do Flâneur ao Ciberflâneur: breve digressão pelas práticas interactivas do espaço contemporâneo», in Genealogias da Web 2.0, RCL (Org. Pedro de Andrade), Revista de Comunicação e Linguagens, RCL, nº 42, Lisboa, Relógio D`Água (2011), pp. 247-271.
Site de acesso: http://www.cecl.com.pt/rcl/edicoes/rcl-42-genealogias-da-web-2-0
1 Steiner, George - O silêncio dos livros (seguido de Esse vício ainda impune), de
Michel Crépu, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 62-63.
2 De facto, hoje
em dia somos cada vez mais uma espécie de «turistas sentados» à frente do
computador. Esta urgência de andarmos vertiginosamente sem sequer nos
deslocarmos fisicamente, será uma das abordagens a que nos dedicaremos,
posteriormente, quando desenvolvermos algumas das questões relacionadas com a
problemática da hiperficção, da
interactividade e das múltiplas retóricas do link, etc.
3 Para uma
análise mais detalhada desta noção de «viagem», para além do Anti-Édipo
de Deleuze, veja-se também o livro de Jacques Besse - «Le Danseur», in La
Grand Paquê, Paris, ed.Belfond, 1969, já que toda a primeira parte deste
livro descreve precisamente o passeio do esquizo pela cidade moderna, enquanto que
a segunda parte - «Legendes folles», se dedica a reflectir sobre o
processo algo alucinatório da viagem a partir de determinados episódios
históricos. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix - O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, Lisboa, Assírio &
Alvim, s/d, pp. 88-91.
4 Para uma
análise mais pormenorizada do conceito de «não-lugar», veja-se também o
livro de Marc Augé, denominado precisamente de «Non-Lieux. Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité»,
Paris, Éditions du Seuil, 1992.
5 Robert
Smithson, cujos projectos favoritos eram a recuperação artificial de zonas
mineiras abandonadas ou espaços pós-industriais sujeitos às forças infernais da
natureza, parecia assim perseguir ao longo dos seus percursos, não só as marcas
contraditórias de um projecto de intervenção social, cultural e artístico (a
partir de um dos seus principais conceitos - «esculturas de um sítio»), mas
também as marcas ou os «passos de uma terra esquecida pelo tempo» (partes de um
certo local em transformação), aí onde pareciam habitar, suspensos, o
«presente, o passado e um qualquer futuro ainda por vir». Careri, Francesco - Land &
ScapeSeries: Walkscapes: Walking as
an aesthetic practice, Barcelona, Editorial
Gustavo Gili, SA, 2002, p. 161.
6 Os seus
passeios épicos nos Himalaias, Andes, Austrália, Japão e Islândia, são uma das
marcas mais inconfundíveis da história da Land Art Internacional.
7 Shaviro, Steven - «Ligações
Perigosas: a ontologia das redes digitais», in Bragança de Miranda, José A. e Teresa
Cruz, Maria (org.), - Crítica das
Ligações na Era da Técnica, Lisboa, Tropismos, 2002, p.197.
8 Blanchot,
Maurice - O Livro por Vir, Lisboa, Relógio
D`Água, s/d, p. 249.
9
De facto Baudelaire teve a
extraordinária capacidade de escrever algumas das melhores páginas do seu e do
nosso próprio tempo, conforme podemos constatar da leitura dalgumas das mais
variadas passagens dos seus livros.
Todos eles, aliás, a merecer uma atenção especial de leitura e releitura.
Livros tais como; «Le Peintre de la Vie
Moderne»; «As flores do Mal»; «Os Paraísos Artificiais», ou ainda «Fusées; Mon Coeur Mis à Nu», isto só
para citarmos algumas das suas obras mais conhecidas.
10 Passagem livremente
adoptada por mim a partir do excerto de um dos versos do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa
(heterónimo Álvaro de Campos), onde reza assim; «Conquistámos todo o mundo
antes de nos levantar da cama». Pessoa, Fernando – Obra poética de Fernando
Pessoa/Poesias de Álvaro de Campos (Introdução, organização e biobibliografia
de António Quadros), Lisboa, Publicações Europa América, p.210. A propósito da
obra poética de Pessoa, veja-se ainda a análise crítica feita por José Gil
(entre outros autores) no seu livro, O
Espaço Interior (no caso da análise desta passagem, veja-se a pág. 18). Gil,
José - O Espaço Interior, Lisboa,
Editorial Presença, 1993, p.18.
Abramovic, Marina e Ulay
1988 The Lovers. The great wall
walk (performance/film, 1h, 5`, sound, colour), Chinese Wall. Collection:
Cologne, Museum Ludwig, online in http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.asp?ID=ML000044&lg=GBR, acedido a 12 de Junho de 2011.
Auster, Paul
2004 The New York Trilogy, London, Faber and
Faber, pp.10-11.
Baudelaire, Charles
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