DEPOIS DE AUSCHWITZ AINDA É POSSÍVEL ESCREVER POEMAS...?
Eusébio Almeida, A ARTE DEPOIS DE AUSCHWITZ, foto a cores, dimensões variáveis, 2009/10. |
«(...) escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro,
e este facto afecta até o conhecimento que explica porque
se tornou hoje impossível escrever poemas»
(Adorno, 1942, Crítica da Cultura e da Sociedade).
Abro a porta da Biblioteca Alexandre O`Neill
e retiro de lá um pedaço de papel amarrotado pelo tempo.
Pego numa faca bem afiada e começo a cortá-lo aos bocadinhos.
O papel começa a gritar.
O sangue a escorrer, sem parar.
Largo imediatamente a faca.
Fujo com a faca na mão em direcção a uma pilha de livros.
Espeto a faca em cima do “Crime e Castigo” de Dostoievsky.
O livro não suporta o peso da faca.
A faca não é uma faca.
A faca é o desejo do assassino.
O desejo é o esboço duma vida.
A vida não suporta tanto peso.
Por isso, desenho um círculo com a ponta dos pés e escondo a faca lá dentro.
Ela começa a chorar. Quer sair. Quer fugir. Quer gritar. Quer matar.
A faca quer matar as personagens do livro.
De faca na mão, abro novamente o livro.
De faca e de livro na mão.
Não sei o que fazer…
O melhor é largar o livro?
O melhor é largar a faca?
O melhor é largar a faca e espetar o livro no chão?
O melhor é largar o livro e correr com a faca na mão?
O melhor é não largar a faca!
O melhor é não largar o livro!
Assim a faca acabará por perder a cabeça,
e o livro por justificar o crime do poeta revoltado.