terça-feira, 25 de maio de 2010


ALGUMAS DAS MELHORES PÁGINAS DA HISTÓRIA DO MUNDO

(Dedico este texto à memória do meu pai, António Gomes de Almeida,
com quem aprendi a caminhar em direcção à liberdade).


«A vida está sempre à beira do desastre»
(Salk)


Tal como há quem escreva para combater a morte, também há quem escreva para suportar melhor a vida. Tal como há quem escreva para viver, também há quem viva simplesmente para escrever. Tal como há quem escreva para preencher a falta ou o excesso de realidade, também há quem escreva simplesmente para não enlouquecer. Esta é, aliás uma ideia muito recorrente na história do pensamento ocidental desde as origens da inquietante história da humanidade. É por esta e por outras razões que não nos faltam exemplos de autores que viveram apenas para conseguir escrever algumas das melhores páginas da história do mundo.

Algumas dessas melhores páginas da história do mundo, terão sido escritas, porventura, por escritores (poetas, filósofos, romancistas, dramaturgos, etc), tão diversos como; Platão, Sófocles, Goethe, Kafka, Freud, Heidegger, Kant, Voltaire, Nietzsche, Tolstoi, Dostoevski, Borges, Rilke, Artaud, Beckett, Robert Walser, Thomas Man, Musil, Ballard, Blake, Rimbaud, Baudelaire, Blumenberg, Hannah Arendt, Deleuze, Foucault, Sarah Kane, Blanchot, Hermann Broch, Roberto Calasso, Ernest Junger, Bataille, Enzensberger, Agamben, Benjamin, Nancy, Zizek, George Steiner, isto só para referir alguns dos mais inquietantes trapezistas da velha história do saber ocidental (a lista, essa, seria verdadeiramente interminável).

Ou seja, assim como há quem escreva para combater a morte, também há quem escreva simplesmente para não morrer. Assim como há quem escreva para combater a vida, também há quem escreva simplesmente para aprender a viver. O que representa uma outra forma de não nos deixarmos abater pelas misteriosas forças do saber (do saber enquanto forma de poder).
Na prática, estes terão sido, porventura, alguns dos muitos “pensadores” que escreveram para apertar a garganta do leitor. Estes terão sido alguns dos autores que escreveram para apertar o pescoço de quem gosta de ler. Estes terão sido alguns dos “escritores” que escreveram como quem atira uma garrafa ao mar, quase como se precisassem de respirar o perfume do frasco que se encontra fora do círculo do declínio das palavras. No fundo, estes terão escrito como quem precisa de se salvar do naufrágio da escrita maldita de não se poder existir sem escrever, pelo menos, uma página de rascunhos por dia.

Estes terão sido, ainda, porventura, alguns dos que escreveram para aprender a fugir. A fugir de algo ou de alguma coisa. Já que aprender a fugir, não é apenas uma forma de nos retirarmos do mundo, mas também uma forma de nos libertarmos das forças que nos oprimem ou que simplesmente nos impedem de viver. Nesta perspectiva, Ts`ui Pên, esse poeta xadrezista que tudo abandonou para compor um livro ou um labirinto, terá dito a certa altura da sua vida: «Retiro-me do mundo para escrever um livro», ou retiro-me do mundo para «construir um labirinto (rigorosamente infinito), renunciando assim aos prazeres da opressão, e enclausurando-se definitivamente durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão, escrevia Jorge Luís Borges no seu famoso Jardim dos Caminhos que se Bifurcam.

Neste caso, nos caminhos que se bifurcam nas páginas 80 e 81 do livro «Ficções», traduzido pela Editorial Teorema, numa edição organizada, se não estou em erro, por Eduardo Prado Coelho, esse autor que escreveu «Tudo o que não escrevi». Terá ele escrito tudo aquilo que não escreveu?
Afinal, o que é a escrita, senão uma outra forma de nos apoderarmos das palavras que ainda não foram pensadas, ditas e escritas pela própria mão do autor que as escreve. Mas, retomando a ideia anterior, diríamos que, se é verdade que há escritores que escrevem para não enlouquecer. Se é verdade que há escritores que escrevem para combater a morte ou para não morrer. Se é verdade que há escritores que escrevem apenas para aprender a viver, também há outros que aprendem apenas a dar  murros no crânio como forma de aprender a escrever (a aprendizagem da escrita do livro é por isso uma coisa muito estranha).

Se tudo isto é verdade, também não é menos verdade, que há escritores que escrevem, apenas, para se entreter e para entreterem todos aqueles que os lêem. E outros ainda, que escrevem simplesmente para ganhar prémios, honrarias, títulos, etc. O que é também uma outra forma de escrever. A verdade é que por falta de espaço e de tempo também, neste momento não vou conseguir escrever muita coisa sobre cada um destes autores. Lá virá o dia em que tentarei escrever alguma coisa sobre cada um deles. É que, agora, tenho uma enorme lista de livros sobre os quais tenho necessariamente que pensar, antes de os poder continuar a devorar.

Aliás, neste momento, devoro as últimas páginas do livro de um grande pensador, que se «inclina para o ensaio como forma de aproximação ao real». Esse pensador é um grande escritor de livros de ensaios. Esse grande pensador chama-se José Bragança de Miranda. O que significa, que nem só de grandes pensadores estrangeiros se faz a grande história da literatura do mundo. Este, pelo menos, escreve como quem caminha de costas voltadas para o céu. Escreve como quem escava um buraco na pele. Como quem traça um edifício no ar. Como quem pensa com os dentes cravados no chão. Como quem desenha as palavras na boca. Como quem anda sem algemas nas mãos. Como quem corre sem argolas nos pés.

Este grande senhor pertence à extraordinária linhagem daqueles pensadores que aprenderam a "amassar" o pensamento com as mãos e com dentes, ajudando-nos assim a baralhar a vida e a confundir as sua forças, antes que estas sejam trespassadas com a ajuda da flecha das palavras, quase como quem bate com a cabeça num vidro que parte. Só assim aprenderemos a viver para que um dia sejamos todos apenas rodeados de flores…



terça-feira, 11 de maio de 2010



 O RETRATO DO POETA REVOLTADO

(work in progress de Eusébio Almeida)

        
      Luís Pacheco                         Hanish Bali                                Prado Coelho
                                      
                                                                                                                                      
  com uma faca bem afiada na mão
rasgo as páginas de um livro
que pertence ao poeta Herberto Helder
mas o poeta não gosta da faca bem afiada
por isso foge com o livro de poemas rasgado debaixo do braço

na verdade o poeta não é uma máquina qualquer
é apenas uma espécie de máquina de escrever
viciado na magia das palavras
 quase como se fosse um libidinoso
devorador de livros inúteis

mas o poeta não é uma máquina de escrever
é apenas uma máquina que escreve poemas com as mãos
antes que estas lhe permitam cravar os dentes bem afiados
no ventre da terra depois deste traçar um círculo no chão
com a ponta dos pés a fim de determinar o património
genético das coisas

por isso o poeta é uma máquina que escreve
não apenas com os dedos
mas também com o suor que escorre da saliva da boca
enquanto esta se deleita com as letras da música
soletrada no silêncio do arquivo das palavras
que o poeta desconhece

em nome da liberdade das palavras
o poeta não escreve apenas sobre a memória das coisas
mas também sobre a magia daquilo que não serve para nada
por isso é que o poema
tal como o poeta
não consegue parar de escrever
não por ser uma máquina
mas por ser um poeta que escreve
com a ponta dos dedos a doer

agora o poeta vai dormir...
 mas os poetas também dormem?
não, os poetas não dormem
adormecem apenas de cansaço
tal como as palavras que descansam no colo
do leitor de livro fechado na mão

é de livro fechado  na mão
que nascem os poemas que não sabem ao suor do poeta
mas apenas à saliva das palavras
que deslizam do ventre e dos lábios carnudos da terra

a terra a chorar pela morte do poema que surge do suor
dos dedos cansados do poeta
que sangra perante o poema que escreve

...não liguem, porque o poeta está cansado
tal como o poema que acaba de escrever
até que apareça a última palavra antes da última palavra
para que o poema consiga finalmente nascer

bom dia, volto já...
dizia o letreiro pendurado na porta do quarto
do poeta enquanto este fingia que dormia

de facto os poetas não dormem
adormecem apenas de cansaço

tal como a maioria dos livros
  tal como a minoria dos homens