sexta-feira, 4 de dezembro de 2009



UTOPIAN SCREEN
de Filipa César


Projecto de Filipa César, Allee der Kosmonauten, 2007, Berlin (e exposição 2x8).


Para criar uma imagem basta escrever uma palavra numa página qualquer. Qualquer palavra pode ser uma nova imagem da história do mundo, desde que o mundo não seja uma página em branco ou que a brancura das frases não sejam um mero refúgio e os homens não se transformem apenas em pedaços de pedra. A verdade é que as pedras são imagens invertidas depois de reflectidas no espelho da cidade que acabo de percorrer. A cidade, neste caso, está no centro das palavras que acabo de escrever. Vou acreditar que as palavras que acabo de escrever não existem ou que existem apenas dentro de uma espécie de narrativa virtual. O real dentro do virtual. O virtual dentro do real (a confusão é total).

A encenação especulativa esgota-se aqui (só conheço o que conheço, o resto não interessa para nada). A verdade, porém, é que o pulmão da escrita ainda é o mundo (que carece de provas para poder existir à margem da ficção). Por isso é que somos uma parte daquilo que negamos. Aliás, negamos a existência para poder existir melhor. A melhor parte do mundo é sabermos que a realidade pode ser um espelho demasiado enganador. O problema é que os espelhos são apenas simulações aproximadas do desejo de possuir uma série de orgasmos visuais. Os orgasmos visuais, esses, são experiências de mera sedução. Seduzir é ser fiel a uma máquina (mesmo que de ficção).

No fundo, sei que preciso pelo menos de uma imagem. Agarro na mochila, e fujo com essa imagem dentro do bolso. Embrulho-me nas costas da imagem. Só me interessam as costas da imagem. Fujo com uma imagem dentro do bolso, só assim é que consigo resgatar a primeira imagem do mundo. Só assim é que consigo acreditar que ainda é possível partir de novo. Parte da viagem nasce do consolo de saber que não tenho os pés encostados às costas, e que as costas não pertencem à geografia instável do crânio, e que o crânio é uma máquina bem diferente da máquina com que fotografo os passos e os gestos que me fazem percorrer esta cidade (o mundo é uma parte do estômago).

Basta colocar uma venda nos olhos para acreditar naquilo que acabo de escrever. Para acreditar no futuro basta tomar um comprimido (verde-amarelo-azul-laranja-roxo), neste caso, tanto faz, desde que entretanto se cuspam para fora do instante a transformar pela dor instantânea do devir. Experimentar-cair-levantar (tudo em nome da grande personagem do século). A grande personagem do século é o perigo do eterno caminhar. Do não ter de chegar. Eu sei que perdemos a bússola, que perdemos o mapa, mas a cabeça ainda é uma ponte que nos pode ligar à outra margem da cidade. Ainda nos resta acreditar que a vida não se resume a um simples «negativo do mundo», ou seja, neste caso, não basta procurar uma simples bolha de protecção. É preciso  é acreditar que ainda é possível inventar um novo paraíso (simular é preciso).

Nós sabemos que a máquina não pára de ganir. Que as imagens não param de sair (de circular, de andar, de vingar, de matar). Não vale a pena parar a máquina. É preciso é não abandonar o barco. É preciso é abrandar o passo. Não caminhar tanto. Respirar um pouco de ar puro. Ouvir uma música de Miles Davis. Um poema de Rimbaud. Uma história de Sarah Kane, etc. Ou então escutar apenas o silêncio de uma imagem que arde sem parar. A mochila, essa, continua às costas. Amanhã regresso de Nova Iorque. Depois vou para Berlim. Entretanto regresso novamente a Lisboa. O comboio, o barco, o avião partem todos às 6 da manhã.

Lembrar ou não lembrar, já pouco importa. Agora preciso é de abrir os olhos e lentamente erguer a cabeça em direcção ao tecto deste avião (olhar para este tecto é como tentar fotografar as pessoas que não consigo enquadrar). Tenho a cabeça a arder só de imaginar que não posso voltar as costas ao futuro. O melhor é continuar a fugir! Será o futuro apenas uma máquina de fazer regressar o presente ao passado? Enfim, a minha sorte é que as imagens não morrem, e o futuro está prestes a chegar. Para isso basta carregar no botão e o mundo jamais deixará de existir. O mundo jamais deixará de existir?

Há imagens que não servem para nada. Há outras que são eternas. Há animais que vivem mais do que os homens. Há pessoas que nunca chegam a nascer. Há deuses do tamanho das migalhas. Há pessoas que desejam morrer. Há viagens que nos transformam a vida. O avião está prestes a partir. O melhor é parar de pensar, caso contrário, já não consigo fugir desta viagem que nos pode matar…

Nota: Texto apresentado (com ligeiras alterações) no catálogo do projecto colectivo 2x8, entretanto realizado no Museu António Duarte (Caldas da Rainha), sob a curadoria de David Etxeberria, e que integrou trabalhos de Alexandra Marcos (Escultura), Susana Rosa (Pintura), David Etxeberria, Filipa César e Susana Anágua (Vídeo Arte),  Eusébio Almeida (Instalação), e fotografia de Sofia Martins.