domingo, 8 de novembro de 2009

O TERRORISMO DAS IMAGENS PODE MATAR...
Eusébio Almeida, instalação/performance, A caverna do facebook, Plataforma revólver em punho, LAB.BOX.aRT, Porto/Barcelona, 2009/10.

«A ficção pode libertar-nos do cansaço» (Kafka).

Quase como uma espécie de oração sem palavras. Maldita é a introdução do título de um livro que eu entretanto gostaria de escrever. “O Terrorismo das imagens pode matar” seria o título do livro, quase como se quisesse adiar a violência das palavras que se apressam a sair de uma experiência vivida (pessoalmente) no dia 11 de Setembro de 2004, em Nova Iorque, e da qual não me consigo esquecer. Colisões atrás de colisões. Choques frontais. Quedas sucessivas. Vozes trémulas, convulsivas, vulcânicas. Olhares cansados, vigiados, longínquos, ameaçados. Quase agrafados ao calor da fuligem das paredes acabadas de ruir. Respirações ofegantes, quentes, soletrantes, rasteiras (quase a tocar as entranhas do reverso da imagem de uma cidade prestes a desaparecer). Entradas e saídas entupidas. Estradas bloqueadas. Vidros partidos. Telefones desligados. Corpos entalados, atirados, sacudidos para fora das janelas dos prédios a arder. E entretanto a vontade de saltar de um décimo terceiro andar. Foram muitas, aliás, as pessoas que saltaram para se conseguirem salvar.

A verdade é que perante os ataques de pânico não há rede que nos salve (o chão não nos impede de cair). Os corpos a transpirar, a tremer, a vomitar, a gritar, a sussurrar ao ouvido de deus (surdo, mudo e cego) como «o deus das pequenas coisas». A violência dos corpos violados pelas espirais sem saída. As sirenes a tocar. Impedidos de falar. As bocas a salivar. Os corpos a tremer de frio. E o medo a espreitar dentro de uma espécie de castelo de cartas, prestes a ruir. Os braços levantados a pedir. O 112 a chamar. E as vozes roucas de tanto sufocar («suor, água e sangue, lágrimas, suspiros e gritos»). Tudo parecia estar demasiado inclinado para o acidente. Até o excesso de espera podia matar.

Mais um braço levantado a pedir, e outro, e outro, e mais outro…E um rasto desmedido de suor a atravessar o nosso pensamento à medida que tentávamos perceber a distância certa que nos podia aproximar de mais uma saída qualquer. As portas, essas, continuavam todas encerradas. Os elevadores todos completamente bloqueados. Os bombeiros não paravam de gritar - STOP. STOP. STOP. Trapézios sem rede. Jogos de azar. Jogos de xadrez. Jogos sujos. Jogos de dinheiro. Sem pára-quedas à vista. Pára-quedistas involuntários. E a vida apanhada desprevenida, quase como nos filmes de Vertov. E o dinheiro sem nos conseguir salvar, e nós sem conseguirmos salvar o dinheiro, quase como se vivêssemos dentro de uma espécie de caverna global (tão viciante e cavernosa como a do facebook), ou então dentro de uma espécie de «jardim zoológico sem grades» (sádicos do tempo/acrobatas da tempestade/políticos assassinos/terroristas do acaso).

Mas, o melhor é sacudir este pensamento para bem longe. Afinal, não é só disto que eu quero falar. A verdade, porém, é que há experiências que nos podem conduzir à loucura. Este pensamento quase que dava para me enlouquecer. Será que o melhor é esquecer? Dar meia volta, dar um murro no crânio e continuar desesperadamente a correr? Maldita introdução do título de um livro tão difícil de escrever, depois de ter estado fechado num vigésimo terceiro andar completamente a arder. Tudo isto, só me faz lembrar o «4.48. Psicose» de Sarah Kane. Mas, agora, é a metáfora dos corpos caídos que me parece provocar uma vontade desmedida de escrever. Talvez em nome dos corpos deitados no chão. Talvez em nome dos corpos deitados na cama. Talvez em nome dos corpos que morreram de pé. Talvez em nome dos corpos resgatados depois de terem caído dum centésimo décimo terceiro andar. Talvez em nome dos corpos ou apenas das imagens impossíveis de resgatar.

Perante tudo isto, alguém terá dito e escrito, de forma um tanto ou quanto melancólica - «é a vida». Não, não é a vida! Infelizmente, é a merda do dinheiro que comanda o poderoso mundo dos humanos (dos frágeis, patéticos, e vulneráveis humanos). Basta pensar, nas poderosas redes de tráfico humano, nas poderosas redes de pedofilia, nas poderosas redes de produção e de comercialização de armamento, nas poderosas redes de tráfico de droga, e de outros estupefacientes, nas poderosas redes de tráfico de órgãos humanos, etc, etc.

Mas o melhor é continuarmos a pensar que com ou sem as regras da dança do dinheiro, um dia tudo isto pode mudar (para melhor, esperemos nós que sim), já que para nosso próprio consolo individual, é bom saber que nenhuma conquista a começar pela conquista do dinheiro nos consegue “impedir de morrer”. Já viram se o dinheiro comprasse a morte? Quem é que não gostaria de comprar a morte? Eu sei, que ela às vezes se compra (mas só quando ela se deixa comprar), porque no limite dos limites não há dinheiro que nos salve, não há morte que se compre, porque a vida, essa, é a única coisa que temos. Por isso, perante a felicidade ou a infelicidade das regras do acaso, perante a felicidade ou a infelicidade de um caso sem regras, a verdade é que não foi por acaso que tudo isto aconteceu. A verdade é que fui salvo por acaso, e por acaso salvei alguém que perante as regras do acaso me salvou também das imprevistas regras do acaso, do acaso que salvou alguém. Mas, ao certo ao certo, não sei se fui salvo por acaso (por acaso fui salvo?) ou se por acaso salvei a vida de alguém. A verdade é que um dia destes terei de voltar a Nova Iorque, porque a vida, essa, continua sempre à beira do desastre.