sábado, 27 de junho de 2009

O CORPO NA ERA DIGITAL OU O DESEJO DE SER ETERNO



Fig.2 - Vanessa Beecroft + Eusébio Almeida, Performance, Guggenheim Museum, New York, 2008.


«Só há quatro coisas importantes na vida - comer, cagar, foder e morrer. Se fizeres bem as três primeiras, a quarta não te parecerá tão deprimente». (Patrick Neate)


Quando falamos do corpo, falamos também (quase sempre) da necessidade ontológica de recorrer não só ao imaginário do perigo, à metáfora da violência e aos fantasmas da provocação, como também ao imaginário dos jogos eróticos, dos rituais afrodisíacos e da violação das proibições, quase como se quiséssemos sentir o prazer da vulnerabilidade de viver «rente aos limites incómodos do paradoxo» diria Stig Dagerman. Do paradoxo de não chegar à intimidade das coisas e das pessoas face à virtualização das relações, porque afinal vivemos cada vez mais sentados à frente do computador (rebolamos em cima do teclado, em cima do ecrã, em cima do rato), quase como se toda «a proibição existisse para ser violada», quase como se todos os limites aparentemente ilimitados existissem para ser consumidos, em nome de uma espécie de prazer imediato (felicidade/consolação), apesar da «nossa necessidade de consolo ser impossível de satisfazer», diria ainda Stig Dagerman.

Nesta perspectiva, Dagerman continuaria assim a escrever; «Procuro o que me pode consolar tal como o caçador persegue a sua própria caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta (do ecrã). Quase sempre atinjo o vazio, mas de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo do sopro do vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê entre os dedos? (…)». Tendo tudo isso, a verdade é que é sempre demasiado escasso aquilo que tenho! Apesar do sentimento algo ameaçador com que somos confrontados ao ler estas palavras, a verdade é que é esta espécie de «neurose obsessiva» da ordem da desculpabilização freudiana que nos impele a desejar intensamente aquilo que nos falta. Será ainda esta noção de falta um dos grandes motores daquilo com que desejamos aquilo que desejamos? Desejamos aquilo que nos falta? Falta-nos aquilo que desejamos? (Tudo isto parece um interminável processo tautológico).

É por isso que Rosalin Krauss afirma que esta «lógica do desejo», mais do que uma lógica meramente especulativa, agora, é uma lógica da ordem do «real», da «ordem dos corpos», da ordem das «máquinas», tal como foram estudadas por Deleuze no seu Anti-Édipo, quando este refere ao escrever que «o indivíduo completo desapareceu. Deu lugar a uma série de órgãos – seios, ânus, boca, vagina, pénis – que indiciam todos os desejos imperativos de qualquer sociedade dita moderna ou pós-moderna.

No fundo, é esta «lógica do desejo» (tão antiga quanto o próprio humano) que parece continuar a mobilizar, quer o fetichismo das imagens violentamente sexualizadas do «peep show» contemporâneo (protagonizado pela pintura, pela fotografia, pela publicidade, pelo vídeo, pela televisão, pelo cinema, pela Internet, etc), quer ainda pela obsessão do prazer auto-erótico e exibicionista do homem, ao transformar assim o corpo numa espécie de valor facilmente transaccionável. Tão transaccionável, que consegue levar duzentas pessoas da alta sociedade portuguesa a descer às caves imundas de um hotel (cheio de água e lama estagnada), só para ver uma prostituta nua a roçar-se (em poses diversas) sobre uma pilha de carvão, diria alguém bem informado.
BREVE APRESENTAÇÃO DO PROJECTO MICRO-UTÓPICO


Fig.1
Eusébio Almeida, performance, 2008,
Museu das Micro-utopias.


«Tudo deve servir para pensar». (José Bragança de Miranda)

«A arte é uma droga que gera dependência»
(Duchamp)

Depois da falência declarada dos chamados grandes sistemas teóricos com pretensões de explicação absoluta da realidade(s), e das inúmeras crises de sentido operadas pelos mais variados autores. Depois da alegre sensação de que todos ou quase todos os fundamentos teóricos ruíram (a perda generalizada dos fundamentos), ou de que todos ou quase todos os projectos ideológicos falharam. Depois dos múltiplos escombros deixados pelas «filosofias da suspeita» (Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, etc), e da enorme frustração dos seus eternos seguidores, agora, completamente desencantados ou desiludidos com as inúmeras filosofias idealistas e tecnicistas do progresso.
Depois de todas estas fragilidades do conhecimento e do «empobrecimento da experiência» moderna (W. Benjamin), afinal, o que é que nos resta? O que é que nos resta?

Resta-nos, certamente, como diria Lyotard «começar a interromper o terror teórico», ou seja, agora a nossa grande tarefa consiste em começar a «destruir toda a teoria», o que só pode acontecer sob a forma das mais inquietantes paranóias contemporâneas. Na prática, significa acreditar nas múltiplas possibilidades do "impossível" ainda acontecer, agora sob o efeito tautológico de muitas outras formas ditas de carácter criativo. Por isso, neste sentido nada melhor do que começar pela obra de Duchamp.
Já agora convém salientar que antes de Duchamp (considerando a obra de Duchamp como a verdadeira matriz da arte contemporânea) a arte, na Europa e no resto do mundo, não passava de um enorme mosaico repleto de «imagens» demasiado figurativas, feitas à medida do laboratório pictórico dos artistas da época, que pincelavam, obsessivamente, o rosto do século XIX, em busca de um qualquer «paraíso perdido» (Seurat, Paul Gauguin, Van Gogh, Cézanne, Toulouse-Lautrec, Monet, Manet, Degas, James Ensor, Matisse, etc.) isto só para referir um número muito reduzido de artistas (a lista seria verdadeiramente interminável).

Depois Kandinsky terá dado os “primeiros” passos até chegar ao primeiro quadro abstracto datado de 1910. Entretanto surgirão os dadaístas (Janco, Tzara, Hans Arp, Ball, Man Ray, etc), não só com as suas enormes “patetices em verso” (grunhidos e guinchos ontológicos), e os seus entretenimentos cacofónicos (homo ludens), mas também com os seus protestos contra «o significado da história», e o «derrube» da civilização ocidental. Depois virão os surrealistas, com as sua múltiplas alucinações, as suas fantasmagorias, os seus «automatismos psíquicos», capazes de gerar uma imagética gritante, neurótica, ameaçadora, inventiva, automática, paranóica, febril, compulsiva, arrebatadora, ou seja, encarando assim a arte como uma espécie de «extensor da criatividade», segundo Abraham Moles, ou uma espécie de estrutura variacional do mundo (cheio de dobras, de esquinas, de arestas difíceis de limar). É verdade, que antes de tudo isto, já tinham sido pintados alguns gritos de raiva e de protesto, como os de Munch (1893). É verdade, que já tinham inventado a fotografia (Niepce/1826), que levará, mais tarde, à descoberta do cinema, da televisão, do vídeo, do computador, etc.

Enfim, podíamos continuar a referir, indefinidamente, um sem número de obras e de artistas, mas uma coisa é certa, só depois de Duchamp, é que apareceram todos aqueles grandes “criadores” que acabaram por marcar a História das Artes Visuais (de Warhol a Bruce Nauman - de Pollock a Fontana - de Arman a Vostell - de Donald Judd a Calder - de R.Horn a R.Serra - de R.Smithson a R.Long - de Christo a J.Beuys - de Dan Graham a Marina Abramovic - de G. Richter a Burden - de Merz a Louise Bourgeois - de Matta Crark a Boltanski - de Jeff Koons a Gormeley - de Kiki Smith a Ilya Kabakov - de Nam June Paik a Hans Haacke -de Jenny Holzer a Barbara Kruger - de Gary Hill a Bill Viola - de Tony Oursler a Nan Goldin - de Jeff Wall a Cindy Sherman - de Thomas Ruff a Walker Evans - de Tracey Emin a Olafur Eliasson - de Stan Douglas a Larry Clark - de V.Beecroft a art club 2005 – de Jeffrey Shaw a Stelarc, etc, etc.

Por isso, a obra de Duchamp, como uma das principais matrizes da arte contemporânea, não só terá perseguido e questionado o futuro das práticas artísticas e da cultura em geral, com a pluralidade heterogénea dos seus ready-mades, como também terá aberto um caminho (muitos outros caminhos possíveis), a partir da subtileza demasiado irónica do seu autor, considerado, assumidamente, como um grande provocador/manipulador/disseminador dos tais “objectos sem arte” (um «objecto absolutamente qualquer» diria Harold Rosenberg, a propósito das «escolhas» de Duchamp). Aliás, o próprio Duchamp escreveria em «Duchamp du Signe», que a escolha desses ready-mades não lhe tinha sido ditada por um qualquer deleite estético, bem pelo contrário, «essa escolha teria sido fundada numa espécie de indiferença visual, recombinada ao mesmo tempo com uma ausência total de bom ou mau gosto, na realidade, essa escolha teria sido feita em função de uma anestesia completa dos sentidos» (Marcel Duchamp, Paris, 1975, p.191).

Nesta perspectiva, Duchamp, não só terá conquistado uma posição algo privilegiada no contexto da arte que lhe permitirá escolher tudo aquilo que ele quiser («ausência total de bom ou de mau gosto»), não sei se no sentido de negar um determinado «acto criador», mas pelo menos, no sentido de fundar um novo «processo criativo», que parece resultar da investigação projectual das suas próprias fantasias ontológicas (transformadas depois em mecanismos formais, conceptuais e estéticos).

No fundo, estes terão sido alguns dos recursos, algumas das condições ou algumas das novas categorias (resultantes da «crise» de muitas das outras categorias anteriores), não só capazes de redesenhar mudanças, redefinir processos e naturezas diversas no âmbito das práticas artísticas, como também capazes de convocar novas condições de produção e de recepção cultural da obra de arte («polinização cruzada»), quase como se tudo estivesse demasiado disponível para ser rearticulado, reapropriado, remisturado, redesenhado, recriado, reintegrado, agora, sob a forma de muitas outras potencialidades «pós-objectuais» agenciadas segundo a ordem destas novas formas de acesso ao real.

Dito de outra forma, diríamos que depois de termos cartografado (resumidamente é certo), alguns dos múltiplos sintomas da arte contemporânea, o que se verifica é que continua a existir uma enorme diversidade de possibilidades (ligadas aos novos media tecnológicos, e não só), que parecem querer convocar muitos outros «pequenos começos» (no âmbito das novas práticas artísticas). Estes seriam, porventura, os novos começos de uma qualquer versão micro-utópica (a versão de uma qualquer outra versão feita a partir de versões de versões de uma qualquer outra versão), ou os começos de uma qualquer outra ficção ou hiperficção, mais real que o próprio real ou «hiper-real», isto para utilizarmos uma expressão muito recorrente na obra de Jean Baudrillard (entre muitos outros autores). De qualquer forma, a arte seria sempre uma forma de ficção capaz de se «abrir em todas as suas dimensões, extensível a outras coisas; podendo ainda ser decomposta, invertida, recombinada e constantemente alterada», diria Umberto Eco, não sei se a propósito da sua relação com o «mundo verdadeiro», já que o «mundo verdadeiro parece ter sido destruído por nós», diria Nietzsche, ou se a propósito da sua relação com uma qualquer outra «imagem do mundo».

Ou seja, se é verdade que por um lado não sabemos exactamente o que é que se passa à nossa volta (já que nem sempre conseguimos controlar tudo aquilo que nos rodeia, em termos artísticos), por outro lado, é verdade que vivemos, cada vez mais intensamente mergulhados numa «rede» interminável de relações a que todos nos sentimos, mais ou menos ligados e desligados, onde «tudo é breve, limpo, básico», mas também onde tudo é rápido, impuro e instável. São jogos e ironias, prazeres e simulações, tribos do desejo e bolhas de esperança, movimentos de queda e cenas de posse, tiras de discurso e práticas de bolso, mas também corpos densos, tensos, intensos, porosos, líquidos, inflamados, eléctricos, esburacados, moles, plásticos e elásticos, numa multiplicidade de «encontros» (reais e virtuais), com as novas linguagens da arte.

Na prática, basta pegar no rato e alimentar o «polegar» com uma multiplicidade de linhas de fuga ou de práticas interactivas agenciadas, neste caso, segundo a ordem dos novos media tecnológicos sintomáticos da experiência contemporânea (assumidamente sob a designação taxionómica de cyber art, net art, web art, new media art, electrónic art, etc). É verdade que todos estes recursos, podem e devem servir, não para nos confundir, não para nos anestesiar, mas para nos ajudar a pensar e a problematizar sobre as múltiplas condições de possibilidade desta armadilha demasiado eufórica das imagens aceleradas do mundo actual (do actual mundo das imagens), isto para que consigamos viver de várias maneiras diferentes, e não apenas ao sabor do ritmo infinitamente variado de mais um desdobramento qualquer (um número indefinido de vezes). Estes serão, porventura, alguns dos sintomas decorrentes da plasticidade da linguagem interactiva da arte e da vida a oferecer-nos a possibilidade de reinventarmos novos programas fictícios de correcção da imagem do mundo, quase como se quiséssemos desdobrar, expandir e prolongar o «real», em nome de muitas outras «ligações» («ligações livres», «ligações técnicas», e «ligações atractivas»), quase como se o mundo fosse a mais pequena parcela do ecrã ou então como se o ecrã fosse a maior parcela do mundo. Neste caso, não sei se o mundo reduzido a um simples quadrado pouco expandido («células miniaturizadas» de mundo), ou se reconduzido à sua expansão total, quase como se ainda fosse possível viver dentro de uma mera campânula de vidro ou de uma simples bolha protectora? Será possível, ainda hoje, reinventarmos essa tal bolha protectora? Será possível encontrar essa espécie de campo de sobrevivência, capaz de alimentar os nossos sonhos e de atribuir sentido às nossas mais elevadas aspirações? Só o tempo dirá! E o tempo, esse, corre à velocidade da luz...

Eusébio Almeida a caminho do deserto...